Transcreve-se, na íntegra, a entrevista efectuada ao Prof. Adriano Moreira pelo Jornal
Público.
Uma reflexão apropriada sobre o tema, que subscrevo.
Sr. Prof., V. Exa. sempre igual a si mesmo.
«Adriano Moreira fala com a clareza de um professor experimentado e com os cuidados que seriam normais num ministro dos Negócios Estrangeiros em exercício. Mas não evita abordar as matérias que são assunto habitual das suas crónicas e intervenções públicas: as fragilidades da intervenção militar no Iraque, o multilateralismo, os melhores caminhos para a paz e para derrotar ao paladinos do terror e, em tudo isto, o papel dos Estados Unidos, da União Europeia e de instituições como as Nações Unidas e a NATO.
Numa altura em que a Europa e o mundo ainda não se refizeram do choque do 11 de Março em Madrid e quando passou um ano sobre o início da intervenção dos EUA e forças aliadas no Iraque, Adriano Moreira foi o convidado de mais um programa "Diga Lá Excelência", que ontem pôde ser ouvido na Rádio Renascença e visto no canal 2. A conversa começou, inevitavelmente, por Espanha, onde a vitória dos socialistas encabeçados por José Luís Zapatero reacendeu o debate em torno do terrorismo e dos seus perigos.
P. - Podemos relacionar a vitória do PSOE directamente com o atentado do 11 de Março?
R. - Não tenho elementos que permitam fazer essa relação. Certamente teve influência na opinião pública espanhola, mas parece-me uma conclusão errada dizer que se trata de uma vitória do terrorismo. Há certamente uma mudança de percepção do eleitorado espanhol, mas diz respeito aos responsáveis pela condução política. Não vejo nenhuma relação evidente de que o povo espanhol mudou de atitude em relação ao terrorismo.
P. - Felipe González [ex-líder do PSOE e anterior primeiro-ministro espanhol] escreveu a 10 de Março [véspera dos atentados] um artigo que enviou ao "El País" para publicação, onde apelava ao voto no PSOE mas admitia um cenário eleitoral de vitória do PP, até com maioria absoluta... Se até o PSOE traçava este cenário...
R. - É justamente o que pretendo dizer. O problema diz mais respeito à credibilidade do aparelho político. E esse é, certamente, o efeito colateral que a intervenção dos Estados Unidos provocou. Porque, com as dúvidas sobre a existência das armas de destruição maciça e depois a confirmação de que elas não foram encontradas, o que aquilo que provocou, e e foi gravíssimo, foi pôr a credibilidade dos governos em causa. Do governo dos EUA e dos que lhe estão associados, que naturalmente remetem para os próprios EUA o terem-lhes apresentado evidências que os convenceram. Já tivemos uma declaração do governo da Polónia também no mesmo sentido. Ora a credibilidade dos governos é fundamental!
P. - Mas quando em Espanha surge um novo poder (antiguerra digamos), quando Zapatero diz que vai retirar as suas forças do Iraque, vir agora a Polónia dizer que foi enganada, deixando subentender que se calhar também retira...
R. - Está já a concluir, talvez com uma certa velocidade. Eu diria que o governo da Polónia está a defender a sua credibilidade. Antes que qualquer acontecimento interno a ponha em causa, apontando o exemplo espanhol.
P. - Mas não o deveria ter feito quando Tony Blair veio, há já largas semanas, admitir que os serviços secretos também não o tinham informado convenientemente?
R. - Volto ao meu ponto: logo que se verificou que as armas de destruição maciça não eram encontradas, a credibilidade dos governos que desencadearam a intervenção no Iraque foi posta em causa. Mas há outro aspecto que estadistas responsáveis têm de levar em conta. É que, embora tenha sido, na minha opinião, ilegítima a intervenção dos Estados Unidos, ela instalou depois de feita um perigo verdadeiro: uma reacção contra os ocidentais. Esse perigo tem de ser enfrentado agora pelos governos, sejam quais forem. A retirada do Iraque não é, a meu ver, o mais indicado para um governo responsável. O futuro primeiro-ministro Zapatero, talvez por falta de experiência de governo, constituiu-se prisioneiro das suas palavras. Espero que tenha sido apenas o entusiasmo da vitória.
P. - Mas não poderá haver também um entusiasmo, por parte dos autores dos atentados de Madrid, que os leve a acreditar que assim poderão mudar governos e políticas?
R. - É possível que pensem isso. De resto, em relação a esta rede terrorista, há algumas diferenças em relação à nossa experiência passada que é preciso levar em conta. Em primeiro lugar, eles nunca declararam quais são os seus objectivos estratégicos. E não há nenhum combate onde os intervenientes não procurem perceber e tornar claro o que é que os satisfará para estabelecerem a paz. E isso aumenta a incerteza desta agressão em curso em relação ao Ocidente. Naturalmente, a melhor resposta não é desarmar diante disso. A melhor atitude é apelar à firmeza, à vigilância, à defesa dos princípios. Para quê? Para não consentir a vitória, que então seria fácil, de destruir a nossa própria concepção de vida. E nós não podemos consentir isso, não podemos conceder essa vitória facilmente.
P. - O governo que agora recebeu um voto de confiança dos espanhóis é o do partido que, no caso da Catalunha, negociou [uma trégua unilateral] com a ETA...
R. - Vamos ver como é que o povo espanhol, que confiou nesse governo que já tinha esse aspecto considerado negativo em geral, vai manter essa relação de confiança.
P. - Não acredita que o povo espanhol possa ter deixado de pensar que a firmeza é a solução e que possa estar neste momento aberto a uma negociação em várias frentes?
R. - No dia em que for aceite que a negociação é o método de lidar com esta agressão, está reconhecida a legitimidade política. Acho que isso seria extremamente grave.
P. - O dr. Mário Soares, aqui em Portugal, ainda agora sugeriu que se deve avançar para uma negociação com a Al-Qaeda...
R. - Devo dizer que já li uma referência muito ligeira a essa declaração, mas gostava de conhecê-la na íntegra. Porque...
P. - ... "é preciso conhecer o inimigo, é preciso saber as suas razões"...
R. - Exactamente. Uma das grandes dificuldades que os serviços de informação mostram é conhecer o inimigo. Porque o inimigo é completamente diferente do inimigo do passado. Nem sequer se trata daquilo que era qualificado como terrorismo, que era o terrorismo territorializado, com aconteceu nas lutas anticoloniais. Neste momento é um inimigo em rede, que não tem povo, que não tem alimentação orçamental regular (mas não lhe faltam recursos financeiros), que não declara os seus objectivos estratégicos...
P. - Declara um, extremamente vago: é contra o Ocidente.
R. - Esse é, justamente, um dos motivos da nossa perplexidade com aquilo que está a acontecer. A negociação é o valor, o método, da nossa cultura ocidental. É mesmo um dos valores fundamentais da atitude europeia. Nós devemos, pelo diálogo, resolver os problemas mas não é por cedências, é por evidências. Neste caso, não sabemos quem é a outra parte, não temos conhecimento do adversário, conhecemos mal a sua estrutura e funcionamento. É por isso que eu não vou fazer nenhum comentário a essa declaração.
P. - Mas mesmo que soubéssemos quem era, fazia sentido negociar nestes termos?
R. - Não. Não vejo nenhum sinal, da parte desse adversário tão mal conhecido, que seja daqueles que possam indicar, a estadistas responsáveis, uma luz para o diálogo.
P. - E em relação à ETA, essa cultura europeia do diálogo deveria levar o governo espanhol a sentar-se à mesa das negociações? Como fez o senhor Rovira na Catalunha?
R. - E se pusesse a pergunta ao contrário? Sentar a ETA à mesa das negociações? Porque isso tem a ver com problemas que estão territorializados e nós, que até apoiamos o direito de intervenção em lugares onde há conflitos, muitas vezes esquecemos que ainda não resolvemos dois conflitos internos muito sérios: o da ETA e o da Irlanda do Norte. Isso devia preocupar toda a Europa mas, estranhamente, tem sido reservado à jurisdição interna de cada um dos países. Mas a tentativa de diálogo com os bascos é contínua, tal como as tentativas de aumentar as autonomias. Isso é parte do diálogo. Parece é que há algum sector irredutível, e isso é um julgamento que o governo espanhol tem de fazer. Mas é um fenómeno completamente diferente do terrorismo transnacional, que além de ser, como disse o professor Torres, "o apocalipse da razão", é que ele faz do sacrifício dos inocentes o penhor do êxito. E isto é uma coisa extraordinária!
P. - Mas há terroristas "bons", com causas, que avisam antes do atentado?
R. - Cada um invoca a sua escala de valores. E o terrorismo, que é um método de combate, invoca também uma escala de valores. Até comete o abuso de incorporar elementos religiosos no conceito estratégico que os orienta.»