sábado, fevereiro 04, 2006

Os orgulhosos

Quando finalmente ouvimos a porta fechar-se atrás de nós, pensei no que aconteceria se olhasse para trás. Como é que pediria perdão por uma falta destas?

Subíamos por uma físsura na pedra, que formava um caminho em zigue-zague, quando o meu guia falou:

- Aqui convém ter cuidado. Procura encostar-te na parte externa da curva.

O esforço que fazíamos para subir era tanto que a Lua já se havia posto quando finalmente escapámos daquela gruta. Paramos, enfim, sobre um terraço plano e desabitado. A beirada lisa aparentava rodear toda a montanha, até onde eu podia ver, e tinha a mesma largura formando um patamar em volta do monte. Da beira do precipício até o pé da subida íngreme, cabiam três homens deitados.

E então percebi que o penhasco interno, que não oferecia maneira de subir, era de mármore branco adornado com vários entalhes em relevo. As formas eram tão perfeitas que fariam inveja não só aos melhores escultores como à própria natureza.

À imagem do anjo que desceu à Terra para anunciar a paz tão esperada pelos homens só faltava falar, de tão perfeita que era a escultura. Poder-se-ia jurar que ele dizia "Avé!", pois aquela que nos trouxe ao mundo o Amor Supremo também estava lá representada. Em volta da sua imagem estavam as palavras: Eis a Serva de Deus.

- Esta não é a única escultura - disse o mestre. - Por que não vemos as outras?

E então segui o mestre e contemplei, além da imagem de Maria, outra história inscrita na rocha. No mármore via-se o carro e os bois puxando a Arca Santa. Na sua frente havia sete coros tão realistas que os meus sentidos ficaram em dúvida. Uns sentidos diziam "não", e outros "sim, estão a cantar!". Da mesma forma, os fumos esculpidos do incenso eram tão perfeitos que os meus olhos e nariz não conseguiam decidir entre o sim e o não.

Mais adiante, bem à frente da Arca, o modesto salmista David dançava, mostrando nada mais, nada menos do que um rei. Na janela estava a sua mulher Micol, observando com desdém.

Afastei-me um pouco para observar uma terceira história, contada pelo relevo do mármore. Lá estava o nobre imperador Trajano, cercado por cavaleiros, águias e todo o seu exército. Ao seu lado estava a pobre viúva, que lhe pedia ajuda. Podia ouvir-se o diálogo entre os dois e, no fim, o momento em que o imperador deixa as suas preocupações para atender ao humilde pedido da velhinha.

Enquanto me deleitava admirando aqueles exemplos de humildade, o mestre sussurrou-me:

- Olha! Lá vêm eles! Vê como lentamente se aproximam! Irão Mostrar-nos o caminho até aos degraus.

- Mestre - respondi - o que é isto que vejo a aproximar-se? Não parecem pessoas! Não sei o que são! A minha vista está confusa.

- A grave condição do seu tormento - disse - esmaga-os contra a terra, de tal forma que não existe a certeza no que se vê. Mas presta bem atenção e verás o que se move debaixo daquelas pedras e entenderás a pena que os golpeia.

Oh orgulhosos cristãos, miseráveis e cansados. Não vedes que somos meras larvas, nascidas para formar a angélica borboleta que à Justiça voa sem defesa?
Por que razão as vossas pretensões são tão altas se não sois mais do que insectos defeituosos?

As almas pareciam aquelas estátuas que, como pilares, sustentavam uma cornija às costas, e dobram o peito até aos joelhos. Algumas estavam mais baixas que as outras, conforme a carga que levavam às costas, mas mesmo a mais paciente de todas parecia dizer, em pranto:

"Mais do que isto, não posso!"


- Dante Alighieri, Canto X