Auschwitz
Obrigada pela lembrança.
Arbeit macht frei
Há muitos outros Auschwitz, em forma mais subtil, hoje em dia.
“Vós, juizes e sacrificadores, não quereis matar enquanto a besta não haja inclinado a cabeça?
Vede:
o pálido delinqüente inclinou a cabeça; nos seus olhos fala o supremo desprezo.
“O meu Eu deve ser superado:
o meu Eu é para mim o grande desprezo do homem”.
Assim falam os olhos dele. O seu momento maior foi aquele em que a si mesmo se julgou. Não deixeis o sublime tornar a cair na sua baixeza!
Para aquele que tanto sofre, só há salvação: a morte rápida.
O vosso homicídio, oh! juízes! deve ser compaixão, e não vingança. E ao matar, tratai de justificar a própria vida.
Não vos basta reconciliar-vos com aquele que matais.
Seja a vossa tristeza amor ao Super-homem; assim justificais a vossa supervivência!
Dizei “inimigo”, “malvado” não; dizei “doente” e não “infame”; dizei “insensato” e não “pecador”.
E tu, juiz, se dissesses em voz alta o que fizeste já em pensamento, toda a gente gritaria:
Abaixo essa imundície e esse verme venenoso!...
Uma coisa, porém, é o pensamento, outra a acção, outra a imagem da acção. A roda da causalidade não gira entre elas.
Uma imagem fez empalidecer o homem pálido. Ele estava à altura do seu acto quando o realizou, mas não suportou a sua imagem depois de o ter consumado.
Sempre se viu só, como autor de um acto. Eu chamo a isso loucura; a excepção converteu-se para ele em regra.
O golpe que deu fascina-lhe a pobre razão:
a isso eu chamo loucura depois do acto.
Ouvi, Juízes!
Ainda há outra loucura:
a loucura antes do acto.
Ah! não penetrastes profundamente nessa alma.
O juiz fala assim:
“Por que razão matou este criminoso? Queria roubar”.
Mas eu digo-vos: a sua alma queria sangue e não o roubo; tinha sede do gozo da faca!
A sua pobre razão, porém, não compreendia essa loucura e decidiu-o.
“Que importa o sangue? — disse ela. — Nem sequer desejas roubar ao mesmo tempo? Não desejas vingar-te?”
E atendeu a sua pobre razão, cuja linguagem pesava sobre ele como chumbo; então roubou ao assassinar. Não se queria envergonhar da sua loucura.
E agora pesa sobre ele o chumbo desse seu crime; mas a sua pobre razão está tão paralisada, tão torpe!...
Se ao menos pudesse sacudir a cabeça, a sua carga cairia, mas, quem sacudirá esta cabeça?
Quem é este homem? Um conjunto de doenças que, pelo espírito, abrem caminho para o mundo, onde querem apanhar a sua presa.
Que é este homem? Um magote de serpentes ferozes que não se consegue entender; por isso cada qual vai procurar a sua presa pelo mundo.
Vede este pobre corpo! O que ele sofreu e o que desejou, a alma interpretou-o a seu favor; interpretou-o como gozo e desejo sanguinário do prazer da faca.
O que adoece agora, vê-se dominado pelo mal, que é mal agora; quer fazer sofrer os outros com o mal de que sofre; mas houve outros tempos e outros males e bens.
Dantes era um mal a dúvida e a vontade própria. Então o doente torna-se hereje e bruxo; como de hereje e bruxo padecia e fazia padecer.
(...)
Assim falava Zaratustra.
- Nietzsche, DO PÁLIDO DELINQÜENTE