A doçura do ser/Ser
Parvoíces de besugo, passa já.
Tenho um amigo, que é tão talentoso como amigo, que vejo pouco. Três ou quatro vezes por ano, no máximo. Vivemos na mesma cidade, misturados na imensidão de ... 15.000 habitantes. É estranha, esta lonjura feita de cercania.
Somos amigos desde os bancos da escola primária. No fim do liceu, eu fui dissecar cadáveres para o Hospital de São João, num Porto cinzento, enquanto ele foi para o Conservatório (é um excelente pianista), num Porto colorido.
Há os dois Portos em mim, como também há nele. Vi o cinzento nos olhos dele quando a mãe lhe morreu dum cancro que, para o fim, nem eu (o "besuguinho", chamava-me ela, e assim me chamou até ao fim), logo eu que queria tanto, consegui deter. Ele viu cores nos meus olhos castanhos de simples quando, como quem pede desculpa, me veio trazer os restos dos remédios que a mãe não tomou. Disse-me que poderiam servir-me para dar a outras pessoas, com menos dinheiro, enquanto esperam pela mesma sorte. Pelo mesmo azar.
Eu hoje sinto-me tão bem! As pessoas que gostam de mim dizem-me sempre que tenho os olhos mais bonitos do mundo quando se molham, porque nunca se molham em vão. Funda felicidade, a de saber que há quem nos embeleze os olhos só de olhar para eles com alguma atenção.
O que agora desejo, a toda gente do mundo, mas mesmo a toda a gente (estúpido besugo, que não fazes triagem quando te molham os olhos!), são uns minutos ocasionais desta coisa estúpida de estar bem, como eu estou agora. Não é difícil: eu sei que todos os olhos que se molham são tão bonitos como os meus. E sei, também, que se estivermos atentos, há sempre quem esteja disposto a embelezar-nos os olhos com algumas lágrimas sentidas.
posted by besugo @ 10:35 PM
-------
Ao Besugo, apenas:
O INFINITO
Sempre cara me foi esta erma altura
Com esta sebe que por tanta parte
Do último horizonte a visão exclui.
Sentado aqui, e olhando, intermináveis
Espaços para além, e sobre-humanos
Silêncios, e profunda quietude,
Eu no pensar evoco; onde por pouco
O coração não treme. E como o vento
Ouço gemer nas ervas, eu àquele
Infinito silêncio esta voz
Vou comparando: e sobrevem-me o eterno,
E as idades já mortas, e a presente
E viva, e seu ruído... Assim, por esta
Imensidade a minha ideia desce:
E o naufragar me é doce neste mar.
- Giacomo Leopardi
Parvoíces de besugo, passa já.
Tenho um amigo, que é tão talentoso como amigo, que vejo pouco. Três ou quatro vezes por ano, no máximo. Vivemos na mesma cidade, misturados na imensidão de ... 15.000 habitantes. É estranha, esta lonjura feita de cercania.
Somos amigos desde os bancos da escola primária. No fim do liceu, eu fui dissecar cadáveres para o Hospital de São João, num Porto cinzento, enquanto ele foi para o Conservatório (é um excelente pianista), num Porto colorido.
Há os dois Portos em mim, como também há nele. Vi o cinzento nos olhos dele quando a mãe lhe morreu dum cancro que, para o fim, nem eu (o "besuguinho", chamava-me ela, e assim me chamou até ao fim), logo eu que queria tanto, consegui deter. Ele viu cores nos meus olhos castanhos de simples quando, como quem pede desculpa, me veio trazer os restos dos remédios que a mãe não tomou. Disse-me que poderiam servir-me para dar a outras pessoas, com menos dinheiro, enquanto esperam pela mesma sorte. Pelo mesmo azar.
Eu hoje sinto-me tão bem! As pessoas que gostam de mim dizem-me sempre que tenho os olhos mais bonitos do mundo quando se molham, porque nunca se molham em vão. Funda felicidade, a de saber que há quem nos embeleze os olhos só de olhar para eles com alguma atenção.
O que agora desejo, a toda gente do mundo, mas mesmo a toda a gente (estúpido besugo, que não fazes triagem quando te molham os olhos!), são uns minutos ocasionais desta coisa estúpida de estar bem, como eu estou agora. Não é difícil: eu sei que todos os olhos que se molham são tão bonitos como os meus. E sei, também, que se estivermos atentos, há sempre quem esteja disposto a embelezar-nos os olhos com algumas lágrimas sentidas.
posted by besugo @ 10:35 PM
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Ao Besugo, apenas:
O INFINITO
Sempre cara me foi esta erma altura
Com esta sebe que por tanta parte
Do último horizonte a visão exclui.
Sentado aqui, e olhando, intermináveis
Espaços para além, e sobre-humanos
Silêncios, e profunda quietude,
Eu no pensar evoco; onde por pouco
O coração não treme. E como o vento
Ouço gemer nas ervas, eu àquele
Infinito silêncio esta voz
Vou comparando: e sobrevem-me o eterno,
E as idades já mortas, e a presente
E viva, e seu ruído... Assim, por esta
Imensidade a minha ideia desce:
E o naufragar me é doce neste mar.
- Giacomo Leopardi