terça-feira, dezembro 09, 2003

Para um mundo mais seguro

Kofi Annan - Secretário-Geral das Nações Unidas.

CHEGÁMOS a um momento decisivo da história. A grande ameaça de uma confrontação nuclear entre super-potências rivais está ultrapassada. Mas uma nova e diversificada constelação de ameaças surgiu em seu lugar. Precisamos de examinar novamente os instrumentos que regem as relações internacionais. Estarão à altura de responder a estes novos testes? Se não, de que modo os devemos alterar?

Os acontecimentos do ano passado vieram expor profundas divisões entre os membros das Nações Unidas, em questões fundamentais de política e de princípios. Como podemos protegermo-nos melhor contra o terrorismo internacional e pôr termo à dispersão de armas de armas de destruição maciça? Quando é que o uso da força é admissível - e quem o decide? Deve se cada Estado por si próprio ou será mais seguro um trabalho conjunto? A «guerra preventiva» é por vezes justificada ou é simplesmente uma agressão sob outro nome? E num mundo que se tornou «unipolar», qual deve ser o papel das Nações Unidas?

Estes novos debates sobrepõem-se aos que surgiram na década de 1990. É a soberania dos Estados um princípio absoluto e imutável, ou o nosso entendimento dessa questão precisa de evoluir? Até que ponto é responsabilidade da comunidade internacional prevenir ou resolver conflitos no interior dos Estados (em oposição à guerra entre eles) particularmente quando envolvem genocídio, «limpeza étnica» ou outras violações dos direitos humanos? Temos mecanismos eficazes para levar a cabo estas responsabilidades?

Estas interrogações estão no âmago da paz e da segurança internacionais. Não podem ficar sem resposta. Contudo estas não são as únicas interrogações. Para muitas pessoas nem sequer serão as mais urgentes.

De facto, para muitos povos no mundo de hoje, em particular nos países pobres, o risco de serem atacados por terroristas ou com armas de destruição maciça, ou mesmo de se tornarem vítimas de genocídio, deve parecer relativamente remoto comparado com as chamadas ameaças «soft» - os perigos sempre presentes de extrema pobreza e fome, a utilização de água imprópria para consumo, a degradação ambiental e as doenças infecciosas ou endémicas. Trata-se de ameaças que matam milhões de pessoas todos os anos.

Não se pense que estas coisas estão desligadas da questão da paz e da segurança, ou que podemos dar-nos ao luxo de as ignorar até que as ameaças «hard» tenham sido eliminadas.

Neste momento já devemos ter aprendido que um mundo onde existe uma desigualdade gritante - entre países e dentro deles - onde muitos milhões de pessoas enfrentam uma brutal opressão e extrema miséria, nunca será um mundo totalmente seguro, nem mesmo para os seus habitantes mais privilegiados.

Se a base comum que utilizámos para nos posicionarmos já não parece sólida, temos de procurar uma nova base comum para os nossos esforços colectivos. E precisamos de ponderar se a própria Organização das Nações Unidas é o instrumento adequado para responder aos desafios que temos pela frente.

Foi essa a missão que decidi atribuir a um painel de 16 pessoas altamente respeitadas e experientes de todos os continentes e que vai reunir-se pela primeira vez neste fim-de-semana. É presidido pelo antigo primeiro-ministro da Tailândia, Anand Panyarachun, e inclui destacados especialistas em temas de segurança e de desenvolvimento.

O papel desta comissão desenvolve-se em três vertentes: promover uma análise conjunta das ameaças presentes e futuras à paz e à segurança; elaborar uma avaliação rigorosa do contributo de uma acção colectiva para responder a essas ameaças; e recomendar as mudanças necessárias para tornar as Nações Unidas num instrumento legítimo e eficaz para uma resposta colectiva. Em particular, como podem as Nações Unidas «tomar medidas colectivas eficazes para a prevenção e eliminação de ameaças à paz», que é um dos seus objectivos, tal como definido no Artigo I da Carta?

A comissão irá concentrar-se primeiramente nas ameaças à paz e segurança. Mas também precisará de analisar outros desafios, na medida em que estes possam influenciar ou estar ligados a essas ameaças. Isso significa que não deverá apenas olhar para o Conselho de Segurança, mas também para a Assembleia-Geral e para o Conselho Económico e Social.

Pode mesmo significar uma análise do Conselho dos Organismos de Tutela - um dos «principais órgãos» da ONU, mas que não tem qualquer função desde que o último dos «territórios sob tutela» se tornou independente em 1994. Talvez fosse possível encontrar um novo papel para este organismo, à luz das novas responsabilidades atribuídas recentemente às Nações Unidas em alguns países destruídos pela guerra.

Apenas os Estados membros das Nações Unidas podem decidir sobre essas questões, mas a comissão poderá dar aí o seu contributo. Espero que terminem o seu relatório até ao Outono de 2004, para que me seja possível fazer recomendações à próxima sessão da Assembleia-Geral da ONU.

Se a comissão executar bem o seu trabalho, a história poderá, apesar de tudo, recordar a actual crise como uma grande oportunidade que homens e mulheres sábios souberam utilizar para fortalecer os mecanismos da cooperação internacional e adaptá-los às necessidades do novo século.


(c) 2003, Global Viewpoint.