sábado, dezembro 06, 2003

Transformar a OTAN

Lord Robertson examina o significado da Cimeira de Praga e faz uma apreciação dos desafios futuros.

O desempenho duma organização não se avalia pela forma como actua quando tudo está a correr bem mas como reage quando as coisas correm mal. A este respeito, nos meses seguintes à Cimeira de Praga de Novembro, a Aliança teve que enfrentar questões em que os Estados membros não estiveram de acordo e em que foram necessárias difíceis negociações para reconciliar as várias posições nacionais.

No princípio de 2003, verificou-se um intenso debate entre os Aliados sobre o momento do apoio defensivo à Turquia para dissuadir um possível ataque pelo Iraque. Mas negociações difíceis para a obtenção dum consenso são a essência da OTAN. Além disso, apesar das divergências, na Europa e dos dois lados do Atlântico, quanto à política em relação ao Iraque, não obstante os protestos maciços e a proximidade de eleições em vários países da OTAN, a Aliança conseguiu obter consenso suficiente para dar à Turquia ajuda defensiva para enfrentar a ameaça representada pelo Iraque.

Mais uma vez, o problema era de oportunidade não de conteúdo. Apesar das suas divergências, os Aliados demonstraram que levam a sério as suas obrigações nos termos do Tratado e que estão prontos a assumirem-nas. Embora tivesse sido preferível uma decisão mais rápida e mais serena, o que conta é o resultado final. Além disso, o planeamento foi seguido duma decisão rápida de destacar meios para a Turquia.

Nos próximos meses e anos, os membros da Aliança terão sem dúvida que se esforçar novamente para obter consensos quando enfrentarem questões difíceis. De facto, mesmo durante a Guerra Fria, houve muitas vezes divergências entre os países da OTAN. Como o antigo Secretário-Geral Lord Carrington gostava de dizer, ao contrário do bloco soviético, a OTAN canta em harmonia, não em uníssono. É devido à diversidade democrática da Aliança que a OTAN funciona nos bons e nos maus momentos e que, no período depois do 11/9, já obteve vastos consensos num certo número de áreas cruciais.

Vastos consensos

Primeiro, chegámos a acordo sobre o carácter das novas ameaças e sobre a melhor forma de a OTAN e os seus membros lhes responderem. O terrorismo e a proliferação das armas de destruição maciça são os dois principais desafios do século XXI. Os Aliados da OTAN reconheceram isto ao invocarem o Artigo 5º em resposta aos ataques de 11/9. E reconheceram-no de novo ao enviarem forças para o Afeganistão para combater a Al Qaeda e os Taliban. Em consequência, em 2002, enterrámos definitivamente o eterno debate quanto a saber se OTAN pode ou deve agir “fora da área”.

Na Cimeira de Praga, demos mais um passo para chegar a um consenso. Acordámos num novo conceito militar para a defesa contra o terrorismo, que estipula que as nossas forças devem ser capazes de “dissuadir, reprimir e defender” contra os terroristas, e que o deverão fazer onde quer que os nossos interesses o exijam. Além disso, a Aliança já concretizou este compromisso ao dar apoio ao comando holandês-alemão da Força Internacional de Ajuda à Segurança que está presentemente destacada em Cabul.

Também avançámos muito no sentido de obter um novo consenso quanto à forma de enfrentar a ameaça representada pelas armas de destruição maciça. Em Praga, os dirigentes da OTAN concordaram em melhorar as capacidades de detecção, em equipar as forças da OTAN com melhor equipamento de protecção e em apoiar as autoridades civis em caso de emergência. E lançaram um novo estudo de exequibilidade sobre a Defesa Antimíssil da OTAN para analisar as opções para a protecção do território, forças e centros populacionais da Aliança contra toda a gama de ameaças de mísseis.

A OTAN continuará a ser uma organização dinâmica, qualquer que seja o número de membros -

Também emergiu um novo consenso sobre as capacidades militares de que necessitamos para enfrentar as novas ameaças. Em Praga, foi conseguido acordo sobre a reforma da estrutura de comando da OTAN para melhorar a sua rapidez de reacção e de destacamento. Os Aliados também se comprometeram em melhorar bastante áreas essenciais das operações modernas: transporte estratégico, interoperacionalidade e munições guiadas com precisão, entre outras. Muitos Aliados comprometeram-se a fazer individualmente melhorias, outros a constituir equipas para resolver deficiências mais eficazmente. Mas, o que é importante, todos estes compromissos são claros e específicos – o que tornará fácil controlar o seu progresso. Desta forma, o Compromisso das Capacidades de Praga constitui um verdadeiro ponto de viragem na adaptação das capacidades europeias às exigências do século XXI.

Outro grande avanço na área das capacidades foi o acordo alcançado em Praga sobre a criação duma Força de Reacção da OTAN (NRF). Uma força moderna que conferirá à Aliança a capacidade de responder de forma rápida e eficaz às novas ameaças. A NRF equilibrará mais equitativamente os riscos, envolvendo mais Aliados nas operações, em vez de lhes atribuir, apenas por omissão, somente responsabilidades pós conflitos. E reunindo as melhores forças dos dois lados do Atlântico, a NRF também servirá de catalisador da necessária transformação de todas as forças Aliadas. Mais uma vez, um notável novo consenso foi obtido num extremamente pequeno espaço de tempo.

Transformação da Aliança

Antes do 11/9, era geralmente esperado que a Cimeira de Praga se centraria no alargamento da OTAN. Contudo, os convites feitos a sete novos países tornaram-se parte duma agenda de transformação da Aliança muito mais vasta. Mas há um forte consenso de que o alargamento continua a ser um imperativo estratégico, mesmo depois de os sete convidados aderirem formalmente no próximo ano. Isto é assim porque, juntamente com a expansão da União Europeia, o alargamento da OTAN ajudará a consolidar a Europa como espaço de segurança comum. Isto constituirá um grande passo no sentido de tornar a Europa um continente que deixe de ser fonte de conflitos.

Alguns analistas de segurança têm posto em dúvida a aptidão da OTAN para funcionar com muito mais membros. É certo que mais opiniões serão manifestadas em torno duma mesa do Conselho do Atlântico Norte alargada. Mas, como aconteceu nas fases anteriores do alargamento da OTAN, mais opiniões não significa necessariamente opiniões mais divergentes. Embora nenhum dos sete convidados possua capacidades militares espectaculares, cada um deles tem capacidades específicas que serão valiosas para a OTAN. Além disso, trarão entusiasmo, uma boa vontade para, se necessário, assumir riscos e o apreço pelo valor duma Aliança transatlântica permanente. Baseada num tal empenhamento político forte, a OTAN continuará a ser uma organização dinâmica, qualquer que seja o número de membros.

O 11/9 transformou o terrorismo duma preocupação de segurança interna num desafio de segurança verdadeiramente internacional. Por esta razão, os Aliados têm-se esforçado por envolver os seus 27 países Parceiros na luta contra esta ameaça. O Plano de Acção da Parceria sobre o Terrorismo acordado em Praga identifica as possibilidades de cooperação concreta nesta área. Esforços mais alargados para ajudar os Parceiros nas reformas internas e nas questões de segurança deverão ter um efeito positivo nas causas de fundo do terrorismo e na sua propagação a outros países.

A cooperação com um Parceiro em particular, a Rússia, já recebeu um grande impulso o ano passado. No seguimento do 11/9, os Aliados da OTAN e a Rússia compreenderam rapidamente que enfrentam perigos comuns e não podem continuar a dar-se ao luxo de discutir questões como o alargamento da OTAN. Esta constatação levou à criação, em Maio do ano passado, do Conselho OTAN-Rússia. Além disso, continua a encorajar uma cooperação construtiva no quadro deste fórum sobre uma vasta gama de questões de segurança, incluindo o combate ao terrorismo e a prevenção da proliferação das armas de destruição maciça.

Logo após a Cimeira de Praga, em Dezembro do ano passado, conseguimos outro avanço ao acordarmos numa base formal para a cooperação entre a Aliança e a União Europeia em gestão de crises e prevenção de conflitos. Até então, embora as duas organizações tivessem conseguido cooperar com êxito no terreno, designadamente para evitar uma guerra civil na ex-República Jugoslava da Macedónia* em 2001, não tínhamos sido capazes de institucionalizar o relacionamento. Isto agora mudou.

O novo acordo UE-OTAN tem potencial para transformar não só a segurança europeia mas também o relacionamento transatlântico. Ao permitir a utilização de meios e capacidades da OTAN nas operações dirigidas pela UE, os dois lados do Atlântico ficam a ganhar. A União Europeia terá a possibilidade de demonstrar o seu potencial como interveniente sério em matéria de segurança. E, se ficar gradualmente apta a assumir maior responsabilidade pela estabilidade nos Balcãs em substituição da OTAN, as forças dos EUA, em particular, ficarão disponíveis para outras tarefas prementes. Isto contribuirá para facilitar uma nova partilha de encargos mais justa entre os Estados Unidos e uma Europa mais madura.

Tudo considerado, percorremos um caminho bem longo desde o 11/9. Houve uma larga convergência de opiniões sobre as novas ameaças que enfrentamos e sobre a melhor maneira de lhes responder; sobre as capacidades que necessitamos para responder; sobre a contribuição que os novos membros poderão dar à nossa causa; e sobre a necessidade de colaborar com os países Parceiros e com o nosso principal parceiro estratégico, a União Europeia. É claro, ao mesmo tempo, que não podemos ser condescendentes.

Desafios futuros

Em primeiro lugar, a OTAN e os seus membros têm pela frente uma agenda exigente para satisfazer os vários compromissos assumidos na Cimeira de Praga. Isto aplica-se aos esforços reforçados para enfrentar a ameaça terrorista, incluindo uma cooperação mais profunda com os nossos Parceiros. E aplica-se, em particular, aos compromissos que cada um dos 19 membros da OTAN assumiu nos termos do Compromisso das Capacidades de Praga, todos eles fundamentais para a eficácia e a credibilidade a longo prazo da OTAN.

Segundo, temos que completar as nossas ligações com a União Europeia. Os trabalhos de implementação do acordo de Dezembro começaram imediatamente, com ênfase particular na possibilidade de a União Europeia substituir a OTAN na missão na ex-República Jugoslava da Macedónia*. Mas o potencial a mais longo prazo da nossa cooperação ultrapassa bastante a gestão de crises nos Balcãs. E deve tornar-se ainda maior à medida que as duas organizações se alarguem e tenham 19 membros comuns.

Terceiro, temos que redobrar os esforços para convencer o grande público. Uma das características deste novo ambiente de segurança é que as nossas políticas de segurança – e as nossas instituições – estão a mudar mais rapidamente que a percepção que têm as nossas opiniões públicas. Em consequência, a tarefa de explicar o que é a OTAN e o que está a fazer está a tornar-se cada vez mais exigente. Temos, portanto, que fazer um esforço adicional para garantir que a compreensão da nova OTAN pelo público continue muito difundida, forte e apoiante.

O 11/9 e o Iraque demonstram que estamos num período de transição fundamental. O ambiente de segurança está em mudança, assim como a forma como reagimos a ele e uns aos outros. O que é crucial durante este período de transição é preservar e reforçar o que nos trouxe até onde estamos actualmente e tanto contribuiu para a nossa segurança, prosperidade e bem-estar. Trata-se, em poucas palavras, da nossa cultura transatlântica comum de confiança, cooperação e apoio mútuo.


- Lord Robertson, Secretário-Geral da OTAN.