O amigo gaulês, ou o sucesso da evasão da Constituição Europeia
Ninguém ousará dizer que o resultado da cimeira de Bruxelas foi negativo para o interesse português
I. Nos tempos que correm, as boas notícias parecem ser cada vez mais raras. De modos que, quando lá vem uma, é normal que atinja enorme destaque. E se for inesperada, então maior é ainda a alegria. Sucede que neste fim-de-semana houve não uma mas duas boas notícias: a evasão da constituição europeia e a detenção de Saddam.
II. Há várias versões sobre a responsabilidade maior pelo mérito da primeira. Pessoalmente acredito mais na que desenha a vitória do eixo atlantista (Reino Unido e Espanha, a que se juntou decisivamente a Polónia). Nesse caso, é com o maior gosto que cumprimos o dever de dizer "Muchas gracias, Polska!".
Outra tese, porventura mais cínica, aponta o mérito, nem mais nem menos, ao actual Presidente do país do antigo Rei Sol e hoje do senhor Giscard. Dizem que os outros Estados, incluindo os acusados de serem os mais recalcitrantes - a saber, a Espanha e principalmente a Polónia - até estavam a mostrar flexibilidade negocial, mas o sucessor de Napoleão, segundo as crónicas, "não se mexeu", exibindo mais uma vez a já lendária natureza irredutível dos gauleses. Não creio muito nesta hipótese mas, de qualquer modo, pelo sim pelo não, e para o caso de ser verdadeira, aqui fica desde já exarado um grande "Merci bien, Jacques!"
III. Já o primeiro-ministro do Luxemburgo (cujo nome, de momento, não me ocorre), esse titular de um potentado dotado de uma história gloriosa na Europa, explicou a verdadeira razão do sucesso - perdão, segundo a sua estranha opinião, do "fracasso" - como resultante de alguns países terem posto os seus interesses nacionais à frente do interesse europeu (sem com isso pretender atingir Portugal). Ora bem, aí está como numa frase só fica dito tudo. E com uma clareza cristalina. Assim é que é falar. E depois não venham os Estados ditos médios e pequenos queixar-se, alegando que não foram devidamente avisados, quando o Luxemburgo anunciar urbi et orbi que avança sozinho - além da Bélgica, claro - no apoio à França e à Alemanha.
IV. Enquanto se pensava que ainda era possível vir a haver uma Constituição para a Europa, Portugal fez uma excelente proposta: a inclusão no texto final da consagração expressa do princípio da igualdade. É que o assunto não só não era pacífico como, pelo contrário, se revestia de muito melindre, era mesmo quase provocatório. Perguntarão alguns, mais inocentes: mas então esse princípio não estava já reconhecido? Claro que não, nem podia, porque o espírito europeu mais avançado não se compadece com lirismos.
V. Por outro lado, comprovou-se também, por a+b, que o nosso voto favorável à França e à Alemanha na questão do incumprimento do Pacto de Estabilidade não foi um erro, e muito menos uma prova de fraqueza, pelo contrário, foi um preço muito em conta para a obtenção do aval daqueles países para a atribuição a Portugal da Agência Europeia de Segurança Marítima. E vistas agora as coisas por esta perspectiva, ninguém ousará dizer que o resultado foi negativo para o interesse nacional. Embora este, segundo o augusto e nunca por demais venerado primeiro-ministro luxemburguês (cujo nome continua a não me ocorrer), seja negativo por definição. E o facto de o Luxemburgo não poder ter interesse nacional, até porque nem sequer é uma Nação, não é para aqui chamado.
- Paulo Teixeira Pinto
I. Nos tempos que correm, as boas notícias parecem ser cada vez mais raras. De modos que, quando lá vem uma, é normal que atinja enorme destaque. E se for inesperada, então maior é ainda a alegria. Sucede que neste fim-de-semana houve não uma mas duas boas notícias: a evasão da constituição europeia e a detenção de Saddam.
II. Há várias versões sobre a responsabilidade maior pelo mérito da primeira. Pessoalmente acredito mais na que desenha a vitória do eixo atlantista (Reino Unido e Espanha, a que se juntou decisivamente a Polónia). Nesse caso, é com o maior gosto que cumprimos o dever de dizer "Muchas gracias, Polska!".
Outra tese, porventura mais cínica, aponta o mérito, nem mais nem menos, ao actual Presidente do país do antigo Rei Sol e hoje do senhor Giscard. Dizem que os outros Estados, incluindo os acusados de serem os mais recalcitrantes - a saber, a Espanha e principalmente a Polónia - até estavam a mostrar flexibilidade negocial, mas o sucessor de Napoleão, segundo as crónicas, "não se mexeu", exibindo mais uma vez a já lendária natureza irredutível dos gauleses. Não creio muito nesta hipótese mas, de qualquer modo, pelo sim pelo não, e para o caso de ser verdadeira, aqui fica desde já exarado um grande "Merci bien, Jacques!"
III. Já o primeiro-ministro do Luxemburgo (cujo nome, de momento, não me ocorre), esse titular de um potentado dotado de uma história gloriosa na Europa, explicou a verdadeira razão do sucesso - perdão, segundo a sua estranha opinião, do "fracasso" - como resultante de alguns países terem posto os seus interesses nacionais à frente do interesse europeu (sem com isso pretender atingir Portugal). Ora bem, aí está como numa frase só fica dito tudo. E com uma clareza cristalina. Assim é que é falar. E depois não venham os Estados ditos médios e pequenos queixar-se, alegando que não foram devidamente avisados, quando o Luxemburgo anunciar urbi et orbi que avança sozinho - além da Bélgica, claro - no apoio à França e à Alemanha.
IV. Enquanto se pensava que ainda era possível vir a haver uma Constituição para a Europa, Portugal fez uma excelente proposta: a inclusão no texto final da consagração expressa do princípio da igualdade. É que o assunto não só não era pacífico como, pelo contrário, se revestia de muito melindre, era mesmo quase provocatório. Perguntarão alguns, mais inocentes: mas então esse princípio não estava já reconhecido? Claro que não, nem podia, porque o espírito europeu mais avançado não se compadece com lirismos.
V. Por outro lado, comprovou-se também, por a+b, que o nosso voto favorável à França e à Alemanha na questão do incumprimento do Pacto de Estabilidade não foi um erro, e muito menos uma prova de fraqueza, pelo contrário, foi um preço muito em conta para a obtenção do aval daqueles países para a atribuição a Portugal da Agência Europeia de Segurança Marítima. E vistas agora as coisas por esta perspectiva, ninguém ousará dizer que o resultado foi negativo para o interesse nacional. Embora este, segundo o augusto e nunca por demais venerado primeiro-ministro luxemburguês (cujo nome continua a não me ocorrer), seja negativo por definição. E o facto de o Luxemburgo não poder ter interesse nacional, até porque nem sequer é uma Nação, não é para aqui chamado.
- Paulo Teixeira Pinto