domingo, novembro 16, 2003

LETRILHA

Esteja-m'eu no quente
e ria-se a gente.

Tratem outros do governo
do mundo e mais monarquias
que hão-de governar meus dias
só manteiga e pão bem fresco,
e pelas manhãs de inverno
laranjada e aguardente,
e ria-se a gente.

Coma em dourada vasilha
o Príncipe mil cuidados
como pílulas dourados,
que em minha pobre mesinha
antes quero uma morcela
que no assador rebente,
e ria-se a gente.

Quando cubra as montanhas
de branca neve o janeiro,
que eu tenha cheio o braseiro
de bolotas e castanhas,
e quem me conte as patranhas
do Rei que morreu demente,
e ria-se a gente.

Passe à meia-noite o mar
e arda em amorosa chama,
Leandro por sua dama.
Que eu antes quero passar
do golfo do meu lagar
a branca ou roxa corrente,
e ria-se a gente.

Pois que Amor é tão cruel
que a Píramo e sua amada
deu por tálamo uma espada onde
se unam ela e el',
seja-me Tisbe um pastel
e a espada seja meu dente,
e ria-se a gente.


- Gôngora (Tradução de Jorge de Sena)