sábado, setembro 20, 2003

As Tribos e a Globalização

O dilema de se abandonar os costumes e as leis locais em favor de algo maior, de instituições bem mais abrangentes e universais, não é de agora, como essa discussão sobre a globalização que presenciamos. Pode-se até dizer que boa parte da teoria política e dos ensaios e tratados que os filósofos gregos escreveram, desde os séculos V e IV a.C., abordaram em larga parte justamente disso: de que modo podemos trafegar do meio acanhado que nos criou para uma instância superior, mais eficaz e cosmopolita, sem que percamos nossa identidade ou fiquemos traumatizados por isso.

O poder das famílias
"A Providência fez inclinar a balança de quase todos os acontecimentos numa direção, forçando a todos a tomarem o mesmo rumo..."

A ascensão de Pisístrato
As grandes famílias da Grécia antiga, chamadas de ghénos, eram verdadeiros estados. Conduzidas por um chefe clânico, o basileus ( titulo que mais tarde confundiu-se com o de rei), eram providas com suas próprias regras e costumes, além de cultuarem uma série de deuses, como Démeter, Pósidon, Artémis e Hera, reverenciados no foro do lar. Até moedas próprias, ditas heráldicas, elas tinham, cunhadas com o símbolo do gene a quem serviam. Como não poderia deixar de ser, esses microestados - como os formados pelos genos dos alcmeônidas, dos filaidas e dos cimônidas, famosos e poderosos, que viviam ao redor da Ática antiga -, mantiveram tenaz resistência ao crescimento da polis, as cidades-estados gregas, que começaram a estruturar-se pelos séculos VII e VI a.C. Esta foi a razão de ser de tantas tiranias existirem naquela época. Somente um arconte poderoso, um governante centralizador, dotado de poderes militares excepcionais, como foi o caso de Pisístrato em Atenas, poderia quebrar com os particularismos daqueles clãs que cercavam o mundo urbano.

O plano de Platão
Foi, com certeza, pensando em diminuir-lhes o poder que Platão, no A República, prescreveu um outro tipo de estrutura familiar. A comunidade ideal, segundo ele, seria composta por gente que se acasalasse num himeneu coletivo, visando apenas a reprodução da espécie, vedando-se-lhes a vida familiar tradicional Se todos se sentissem pais e as mulheres adultas fossem mães, pensou ele, os filhos não seriam de ninguém em particular, pertenceriam à sociedade. Os sentimentos voltados para uma família se diluiriam em função de um bem maior. A fidelidade à política da polis, algo sublime, substituiria os atrasados laços de sangue.

Péricles e o Pártenon
Guerreiros gregos

Deste modo, quando Péricles, o líder do partido popular, bem antes de Platão, ordenou no ano de 450 a.C., que os fundos da Liga de Delos ( um tesouro coletivo de mais de 300 cidades gregas, depositado nos cofres de Atenas), fossem usados para construir um complexo de obras , ao encargo do gênio de Fídias e de Calícrates, ele procurava atingir um duplo objetivo: tendo o Pártenon como o seu eixo, queria mostrar ao mundo helênico que Atenas era o centro intelectual, cultural e artístico de todos os gregos, e também suprimir os derradeiros entraves que as poderosas famílias da região da Ática moviam contra a formação de uma comunidade política superior. A cidade-estado, como o próprio Aristóteles enfatizou , era um maravilha constituída pelos homens para alcançar a felicidade, a segurança e o bem-estar. Algo desconhecido pelos que viviam em torno do arcaico e pobre genos.

Unidade política dos gregos
Péricles, pensou construir uma unidade

O apelo subliminar de Péricles fez ao povo grego era para que os que ainda tinham um mentalidade tribal - o das igrejinhas obedientes a um patriarca - , deixassem de celebrar seus santos de casa e viessem prestar suas libações à Atenas Pártenos, à deusa da sabedoria, cuja grande estátua em ouro e marfim, ele mandara erigir na nave amparada pelas belas colunas do Pártenon. Que apagassem os incensos na choupana para aspirar as perfumadas resinas do templo, santuário do bem-estar coletivo e não só de um genos. Liberados das amarras da vida aldeã e do clã, o cidadão heleno, imaginou ele, levando no bolso o dracma, a moeda com a face da coruja, poderia sentir-se participante de um grande empreendimento: o da formação pan-helênica. Os gregos todos viveriam sob a égide de uma só unidade política., a qual ele acreditou algum dia poder forjar.

O projeto de Péricles, como se sabe, foi detonado. Por quase trinta anos, durante a chamada Guerra do Peloponeso, travada entre 431-404 a .C., Esparta ( não a toa a pátria do arcaísmo tribal e bastião militarizado do genos) , moveu a sua implacável máquina militar contra Atenas e o seu propósito, até que o sonho cosmopolita da unidade , afogado em sangue e dizimado pela peste, virasse ruínas.

Sócrates e o pan-helenismo
Isócrates (436-338 a .C.)

O intento, porém, de fazer com que os gregos abraçassem algo superior, a uma forma de organização que superasse seus sentimentos paroquiais, não esmoreceu. Exatamente por ter sido um sobrevivente traumatizado do desastre que se abatera sobre eles, o filósofo Isócrates ( 436-338 a.C.), um discípulo de Sócrates e do pan-helenista Górgias, tido como um dos maiores educadores de todos os tempos, um filósofo que quase chegou aos cem anos e viu de tudo na vida, reerguendo a bandeira de Péricles, deu para matutar uma alternativa. Como os seus conterrâneos eram uns brigões incorrigíveis, adorando embriagar-se no próprio sangue, envolvidos em contendas fratricidas, fazendo fracassar tanto a Liga de Delos como a sua sucessora, a Liga Helênica, a solução para Isócrates estava em convocar uma força política externa a eles.

Engolindo o orgulho de ser cidadão ateniense e o mestre formador dos oradores da cidade - logo ele, um homem tímido que não sabia expressar-se em público -, Isócrates escreveu ao rei Felipe da Macedônia, no ano de 346 a .C., encorajando-o a ser o futuro unificador da Hélade. Não importava que o monarca fosse visto aos olhos de muitos dos seus concidadãos como um dominador estrangeiro, e que até, belicoso, pudesse ameaçar a eleutéria, a independência das cidades gregas. O que lhe interessava era enlaçar o mundo grego e protegê-lo sob o manto de um estado imperial que alargasse a vista de todos, lançando vistas à conquista da Ásia. Que o homem comum pudesse ver para bem mais além dos altos das muralhas da cidade em que nascera, para o amplo horizonte de uma humanidade algum dia unificada, que se fixasse no globo e não a tribo, mesmo que isso significasse ter que deixar de lado o mágico totem do clã ao redor do qual fora criado. Que seguissem Apolo, o deus da luz e da claridade, que se pôs com sua quadriga a seguir a Aurora, isto é o futuro que estava ainda distante.