sexta-feira, março 17, 2006

Celta Alma Portuguesa

A propósito da excelente lembrança do CAA







Portugal Celta
Celtas
Celtíberos
Música Celta (via CAA)

A ALMA PORTUGUESA caracteriza-se pelas manifestações seculares persistentes do tipo antropológico e étnico, que se mantêm desde as incursões dos Celtas e lutas contra a conquista dos Romanos até à resistência diante das invasões da orgia militar napoleónica.
São as suas feições.

A tenacidade e indomável coragem diante das maiores calamidades, com a fácil adaptação a todos os meios cósmicos, pondo em evidência o seu génio e acção colonizadora;

Uma profunda sentimentalidade, obedecendo aos impulsos que a levam às aventuras heróicas, e á idealização efectiva, em que o Amor é sempre um caso de vida ou de morte;

Quando Camões descreve nos Lusíadas, geográfica e historicamente Portugal, referindo-se à tradição da antiga Lusitânia, relembra o vulto que simboliza a sua vitalidade resistente, diante da incorporação romana da península hispânica:

Eis aqui, quase cume da cabeça
Da Europa toda, o reino Lusitano,
Onde a terra acaba; e o Mar começa,
E onde Phebo repousa no Oceano.

Esta é a ditosa Pátria minha amada,
Esta foi, Lusitânia...

Desta o Pastor nasceu, que no seu seio
Se vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja fama ninguém virá que dome,
Pois a grande de Roma não se atreve.

(Cant. III, st. XX e XXII.)

Deixo... atrás a fama antiga
Que co'a Gente de Rómulo alcançaram;
Quando com Viriato na inimiga
Guerra romana tanto se afamaram.
Também deixo a memória, que os obriga
A grande nome, quando alevantaram
Um por seu Capitão, que, peregrino,
Fingiu na Cerva espírito divino.

(Cant. I, st. XXVI.)

No tempo do grande épico ainda se não tinha perdido o conhecimento da relação de continuidade histórica entre Portugal e a antiga Lusitânia, mais vasta e por isso mais violentamente retalhada pela administração imperial romana. Esse conhecimento, embora confundido com as lendas sincréticas dos falsos Cronicões, influiu na consciência do nosso individualismo étnico e nacional. O esforço de desnacionalização de Portugal pela política da unificação ibérica, veio até reflectir-se nos próprios historiadores pátrios, levando-os a considerar Portugal uma formação recente, adventícia, sem individualidade, e a Lusitânia quase como uma ficção banal dos eruditos da Renascença! Mas o carácter persistente do tipo português, a resistência tenaz contra todos os conflitos da natureza e pressões da vida, que tanto o distingue entre os povos modernos, é a prova manifesta da raça lusitana como a descreveram os geógrafos gregos e romanos. Nas lutas pela liberdade territorial a Lusitânia deixou nos historiadores greco-latinos o eco da sua resistência indomável, sobretudo no Ciclo das Guerras viriatinas, que se reacenderam ainda sob o comando de Sertório.

Simbolizamos esta resistência, vivificando o tipo de VIRIATO, reconstruindo poeticamente as situações lacónicas referidas nos historiadores clássicos; representamos artisticamente essa fibra que ainda hoje pulsa em nós, e pela qual, perante a marcha da Civilização se afirma através dos cataclismos políticos a ALMA PORTUGUESA.

Assuetum malo Ligurem, disse Virgílio (Georg., II; 102) dessa poderosa raça, de que o Lusitano foi um dos ramos mais activos.


- Teófilo Braga, Viriato


A CAVERNA DE VIRIATO

VII

Salve, berço do nome lusitano!
Nesta manhã solene.
Que, em volver de ano e ano,
Jamais acabará que a apague o tempo
Da saudosa memória;
Nesta manhã de glória
A ti veio, a ti venho, asilo santo
Da lusitana antiga liberdade.
Tuas lôbregas cavernas
Me serão templo augusto e sacrossanto,
Aonde da Razão e da Verdade
Celebrarei a festa.
Ouça-me o vale, o outeiro,
Escute-me a floresta
Aonde do seguro azambujeiro
Seus cajados cortavam
Os pastores de Luso,
Que a defender a pátria e a liberdade
Nesses tempos bastavam
De honra e lealdade.

VIII

Hoje!... ? Meu sacro rito
Aqui celebrarei nesta caverna.
Teu santuário é toda a natureza,
Potestade superna,
Deus do homem de bem, Deus de verdade,
Imensa majestade
Que do nada tiraste a redondeza

IX

Ouve-me, ó Deus, recebe
Meu puro sacrifício.
No torpe malefício
Da traição não manchei
Minhas mãos inocentes,
Nem sacrilégio ousei,
Teu altar profanando,
Queimar o incenso vil da hipocrisia
Coa dextra parricida gotejando
Sangue da pátria, lágrimas fraternas,
Suor da viúva e do órfão.
Escuta, ó Deus nas regiões eternas,
Minhas acções de graças neste dia,
Dia que a resgatar-nos
Do cativeiro odioso
Estendeste o teu braço poderoso;
E a razão, liberdade,
Dons teus, do homem perdidos,
Restituíste à opressa humanidade.

X

Mas que sinto! ? Desvairam-me os sentidos?
Estas cavernas tremem...
Em torno os ares fremem...
De eco em eco medonhos estampidos
Reflectem pavorosos!
Do extremo fundo lá desse antro surde
(Visão estranha é esta)
Espectro, sombra...
? Manes gloriosos
Sois vós de algum herói? A lança, o escudo
Embraça, empunha: aos pés Águias romanas
Prostradas!... oh! Viriato
És tu, sombra magnânima...

XI

Tua caverna é esta:
De tua glória e teu nome é cheio ainda
O vale, monte e floresta,
Libertador da antiga Lusitânia,
Das regiões da morte
Vieste ver raiar a doce aurora
Da nova liberdade.
Sobre teus pátrios montes?
Esconde, esconde a face, ó varão forte,
Volve ao túmulo ? a raça traidora
Não acabou no vil que a preço indigno
Te vendeu aos tiranos do universo:
O sangue desse monstro
Em quantos corações bate hoje à larga!
São mil por um perverso;
Cobardes todos. ? Ferros que empunharam
Os Lusos teus para salvar a pátria,
Adagas de sicários se tornaram
Em mãos de Portugueses.

XII

Pátria!... não temos pátria...
Oh! não há para nós tão doce nome.
Grilhões, escravos, cárceres e algozes
De quanto outrora fomos,
Isto só nos restou, só isto somos.


- Almeida Garrett, Flores sem Frutos (extracto)