sábado, abril 24, 2004

Oração para antes do nascer



Ainda não nasci; oh, escutai-me.
Não deixem que o vampiro, a ratazana, e o diabo coxo se
[cheguem a mim.
Ainda não nasci; consolai-me.
Temo que a raça humana com altas paredes me emparede,
com fortes drogas me entonteça, com hábeis mentiras
[me iluda.
em negros potros me torture, em banhos de sangue me [imirja.

Ainda não nasci; dai-me
água que me embale, relva que para mim cresça, árvores que [falem
comigo, pássaros que para mim cantem, e uma branca luz
no fundo da minha alma para guiar-me.

Ainda não nasci; perdoai-me
os pecados que em mim o mundo há-de pecar, as minhas [palavras
quando elas por mim falarem, os meus pensamentos
[quando me pensarem
a minha traição engendrada por traidores fora de mim,
a minha vida quando matarem com as minhas
mãos, a minha morte quando me viverem.

Ainda não nasci; ensaiai-me
nos papéis que devo representar e nas deixas que devo pegar [quando
os velhos me ralharem, os burocratas me dirigirem, as montanhas
me franzirem o rosto, amantes se rirem de mim, as brancas
ondas me chamarem à loucura e o deserto chamar
à perdição e o mendigo recusar
a minha esmola e os meus filhos me amaldiçoarem

Ainda não nasci; Oh, escutai-me,
não deixem que o homem que é besta-fera ou o que se pensa
[Deus chegue perto de mim.

Ainda não nasci; oh, enchei-me
de força contra os que hão-de congelar
a minha humanidade, hão-de reduzir-me a um letal autómato,
farão de mim um dente de engrenagem, uma coisa
com rosto, uma coisa, e contra todos os
que dissiparão a minha integridade, me
soprarão como um cardo seco daqui para
ali e dali para aqui e aqui
como água me hão-de ter nas
mãos para desperdiçar-me
Não os deixem fazer de mim uma pedra, não os deixem [desperdiçar-me

E se assim não for, matai-me.


- Louis Macneice.