sexta-feira, novembro 21, 2003

EPÍSTOLA AO CONDE DE OLIVARES

Não me calo, por mais que, com o dedo
Tocando a boca ou fronte levemente,
Silêncio avises ou ameaces medo,
Não há-de haver um 'spírito valente?
O que se diz sempre se sentirá,
E nunca se dirá o que se sente?
Sem medo hoje que livre ofender vá,
Pode falar o engenho, confiado
Em que mor força o não ameaçará.
Em outras eras pôde ser pecado
Severo estudo, e a verdade nua;
E rompe o silêncio o bem falado.
Pois saiba quem o nega, ou o insinua,
Que língua a verdade é de Deus severo,
E que nunca foi muda a língua sua.
São a verdade, e Deus, Deus uno e vero,
Divina eternidade os não separa,
Nem nenhum do que o outro foi primeiro.
Se Deus, sendo a verdade, se adiantara
À verdade, concluir-se justo era
Que ao ser ela, ele de existir deixara.
A justiça de Deus é verdadeira,
E a misericórdia, e tudo quanto
É Deus, tudo há-de ser verdade inteira.
Senhor excelentíssimo, o meu pranto
já não consente margens, nem quer tê-las:
Será inundação a do meu canto.
Já que escorre nas faces amarelas,
A vista por duas umas derramada
Sobre os altares das duas Castelas.
Jaz aquela virtude desmanchada,
Que foi, se menos rica, mais tenida,
Em vaidade e em sono sepultada.
E aquela liberdade esclarecida,
Que quando pôde achar honrada morte,
Já não quis ter mais prolongada vida.
E pródiga da alma, nação forte,
Contava por afrontas só dos anos
Envelhecer nos braços só da sorte:
O ócio torpe do tempo, e os enganos
Da passagem das horas e do dia
Reputavam os nossos por profanos,
Ninguém contava o tempo que vivia,
Mas a maneira como; nem uma hora
Lograva sem afã sua valentia.
A robusta virtude era senhora,
Só ela dominava o povo rudo;
Tão apoucada idade vencedora,
O temor da mão forte dava escudo
Ao coração que nela confiado,
Todas as armas desprezou desnudo,
Multiplicou nas guerras um soldado
Sua honra cara e ânimo valente,
Só da sua honesta obrigação armado,
E sob o vasto céu aquela gente,
Se não a mais quieto, a mais honroso
Sono entregou os olhos, não a mente.
Fiava a esposa para seu esposo,
A mortalha primeiro que o vestido;
Menos o viu galã que perigoso.
Acompanhava ao lado do marido
Mais vezes nas fileiras que na cama;
Seguiu-o são e o vingou ferido.
Todas matronas, e nenhuma dama;
Pois que nomes de cortesão engano
Não admitia a sua severa fama.
Derramado, e sonoro, o Oceano
Era o divórcio das fulgentes minas
Que usurparam a paz do peito humano.
Nem lhes trouxe maneiras peregrinas
O áspero dinheiro, ou o Oriente
A honradez comprou com pedras finas.
Jóia foi a virtude pura e ardente;
Bala o merecimento e a louvança;
Apenas se queria ser decente.
Não dependeu da pena então a lança
Nem cântabro com caixas e tinteiros
Do campo fez herdade, mas matança.
E Espanha com legítimos dinheiros,
Não mendigando o crédito a Ligúria,
Antes quis os turbantes do que os zeros.
Menor a perda fora e a injúria,
Se se volvessem musas os assentos,
Que esta usura é pior que aquela fúria.
Envelheciam aves pelos ventos,
E expirava decrépito o veado;
Grande velhice houve nos elementos.
Que então o ventre, bem disciplinado,
o bastante buscava, e não fartura,
E a garganta estava sem pecado.
Do maior infanção daquela pura
República de grandes homens, era
Uma vaca sustento e armadura.
Não viera ainda, ao gosto lisonjeira
A pimenta engelhada, nem do cravo
A adulação fragrante e forasteira.
Carneiro e vaca foi principio e cabo,
E com rubros pimentos e alhos duros,
Tão bem como o senhor comeu o escravo.
Bebeu a sede nos arroios puros:
Depois mostraram o caminho a Baco
Lá das gáveas os brindes mal seguros.
O rosto macilento, o corpo fraco,
Eram memória do trabalho honroso,
E honra e proveito andavam em um saco.
Afoito pôde um espanhol iroso
os tudescos tratar de bacanais,
E ao holandês de hereje e aleivoso.
Pôde acusar os zelos desiguais
À Itália; hoje porém de muitos modos
Somos cópias, se não originais,
As descendências gastam muitos godos,
Todos blasonam, ninguém os imita;
E não são descendentes, mas apodos.
Veio o caro betume, que vomita
A baleia, ou as ondas espumaram,
Que o vício, e não o odor, nos acredita.
E as hostes espanholas eis ficaram
Bem perfumadas, mas mal dirigidas,
E alfaias só peles se notaram.
Estavam as façanhas mal vestidas,
E de mais que burel havia gana
A vaidade de fêmeas presumidas,
À majestosa seda siciliana
Que manchou roxo múrice, o romano
E o ouro, fizeram áspera tirana.
Nunca ao duro espanhol o verme insano
Persuadiu que vestisse sua mortalha
Intercedendo o Verão quente e ufano.
Hoje a honra despreza o que trabalha,
E então foi o trabalho executória,
E o vício o estigma próprio da canalha.
Pretende o alentado jovem, glória,
Por deixar a vacada sem marido,
E ofende de Ceres a memória.
Um animal para o labor nascido,
E símbolo querido dos mortais,
Que a Jove foi disfarce e foi vestido;
Que em tempo endureceu as mãos reais,
E atrás dele os cônsules gemeram,
E luz comia em campos celestiais;
Porque inimigo ardor se convenceram
Que o apoucamento seu fosse façanha
E às messes uma ofensa tal fizeram?
Que coisa é ver um infanção de Espanha,
Encolhido na sela, e à gineta
E gastar um cavalo numa cana!
Que na infância a um galo ele acometa
Com semelhante arma, isso percebo;
Mas não na idade adulta e já completa.
Exercite suas forças o mancebo
Em frente de esquadrões, e não na frente
Do útil bruto do azevinho o cepo.
Chama-o o clarim de guerra diligente,
Dando força de lei o vento vão
E esteja ao som o exército obediente,
Corri quanta majestade ocupa a mão
A lança, e o mosquete pesa ao ombro,
De quem se atreve a ser bom castelhão!
Com mais asco dentre outros desescombro
O que da sua pessoa, sem decoro
Antes quer nota dar que dar assombro.
Gineta e canas são contágio mouro;
Restituam-se justas e torneios,
Façam pazes as capas com o touro.
Passai-nos vós de jogos a trofeus,
Que só um grande rei, ou um abastado,
Pode entregar-se a esses devaneios.
Vós que nos repetis séc'lo passado,
Corri desembaraçar-nos as pessoas
E a tirar os membros de cuidado.
Com as valonas liberdades doas
P'ra que sejam corteses as cabeças,
Desnudando o enfado às coroas.
E, visto que emendais delicadezas,
Dai pois à melhor parte medicina;
E tornem-se os tablados fortalezas.
Que a estrela cortês, que vos inclina
A conviver sem ódio nem vingança
Milagre que à inveja desatina,
Tem por única bem-aventurança
o reconhecimento temeroso,
Não presumida e cega confiança.
Se vos deu o ascendente generoso
Escudos de armas e de brasões plenos,
E por timbre o martírio glorioso,
Por vós melhores sejam os supremos
Guzmans, e a cumeada desdenhosa
Vos mostre a seu pesar campos serenos,
Lograi idade, pois, tão venturosa;
E quando nossas forças examina
Perseguição unida e belicosa,
A militar valente disciplina
Tenha mais praticantes do que a praça;
Descansem tela falsa, e tela fina.
A marlota se deixe p'la couraça,
E se o Corpus com danças os não pede
Velilhos e ouropel não façam vaza.
O que em trinta lacaios os divide,
Faz sorte contra o touro, e com um dedo
A faz nele a vara com que os mede.
Mandai assim, e achareis bem cedo
Que mais restaurareis do que Pelayo;
Valerá por exércitos o medo,
Ver-vos-á o céu administrar seu raio.


- Francisco de Quevedo (Tradução de Fernando Pessoa)