A Memória é o Maior Tormento do Homem
Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: não sabe o que é o ontem e o que é o hoje. Saltita, de lá para cá; come, descansa, digere, saltita de novo; é assim de manhã à noite, dia após dia. Uma ligação passageira à existência; nem melancólico, nem enfadado.
O homem desgosta-se amargamente, vangloria-se da sua humanidade em relação ao animal, contudo olha com inveja a felicidade daquele - pois, o homem deseja apenas isso, viver como o animal: sem melancolia, sem dor.
E quer em vão, porque o seu quer não é como o do animal.
Certo dia o homem pergunta ao animal: por que não falas sobre a tua felicidade, porque razão apenas me observas?
O animal também quer responder e falar, tal deve-se ao facto de que se esquece sempre daquilo que queria dizer; mas também já esqueceu dessa resposta, e queda-se em silêncio: de tal modo, que o homem se admira disso.
Contudo, o homem também se admira de si mesmo, por não poder aprender a esquecer, e por ver-se constantemente preso ao que passou: por mais longe e rápido que ele vá, a corrente também segue.
É um milagre: o instante, num segundo, aí está! No segundo seguinte já passou; antes um nada, depois um nada. Retorna entretanto ainda como um fantasma e perturba a tranquilidade do instante seguinte. Incessantemente a folha destaca-se do ciclo do tempo; cai e é carregada pelo vento - e, de repente, é trazida de volta ao colo do homem.
Nesse momento, o homem diz: «lembro-me», e sente inveja do animal, que imediatamente esquece e vê o momento realmente morrer, imerso em névoa e noite, a extinguir-se para sempre. Assim, o animal vive
a-historicamente: passa pelo presente como um número, sem quebra.
- Friedrich Nietzsche, Segunda Consideração Intempestiva