quarta-feira, março 02, 2005

A deliciosa ironia



CARTA A UM REGEDOR

Cidadão indispensável,
que regeis com tacto fino
o duvidoso destino
desta famosa nação: –
saúde a paz vos envio,
como fez Narciso a Eco
e depois mercê depreco
nesta humilde petição.

Vós que, sem ser estadista,
resolveis coisas do Estado,
e sois, em lance apertado,
dos governos assessor;
que desprezais por modéstia
a carta de conselheiro,
e persistis em... tendeiro...
algibebe... ou cortador;

Vós, que fazeis deputados
ao sabor do ministério –
e, quando o caso é mais sério,
até mesmo os inventais;
enchendo enfim esse templo
das cortes beneditinas,
que, ao menos, nas oficinas
dão que fazer aos jornais:

Ouvi-me, e sede benigno,
magistrado venerando,
que o tal posso, quero e mando
já lá vos chegou também.
E, sem mais palavreado,
vou tratar do meu assunto,
prometendo um bom presunto
se o negócio sair bem.

Tenho um filho, já crescido,
dum talento desmarcado!
O rapaz há-de dar brado,
se bom caminho seguir.
É pacato e mui sisudo
sem palrar de papagaio,
sempre, sempre, quando eu saio,
fica ele em casa... a dormir.

Abre um livro, e fecha-o logo,
pregando os olhos no tecto –
que o rapaz, como discreto,
medita mais do que lê.
A leitura, só, não basta:
o ler muito nada prova:
olhe esta geração nova!
olhe-se mesmo você!

Sim: você, da sua loja,
analfabeto chapado,
pode escolher a seu grado
um varão legislador;
você, do pobre cantinho
em que de sábio não timbra,
pode mais que uma Coimbra,
faz de repente um doutor!

Hoje custa achar emprego
para um moço bem-nascido:
o comércio está perdido;
a marinha nada vale;
no exército de terra
são bandas por toda a banda;
e qualquer arte demanda
jeito e gosto especial.

Por essas secretarias
reina justiça de moiro;
aos néscios oiro e mais oiro;
os outros... ouvem-lhe o som.
Além disso a inteligência
em breve lá se atrofia:
quem fez uma portaria
nunca mais faz nada bom!

Médicos ganharam muito;
mas esse ganho fez termo:
quando um homem jaz enfermo
é quando menos os quer.
Depois dos vários sistemas,
que todos por fim têm pata,
fica a morte mais barata
quando ela por si vier.

A mina da advocacia
teve bons exploradores,
que antigamente os doutores
não assinavam de cruz.
Mas agora a velha escola
tem dado tanto camelo!
bicho de borla e capelo
quase sempre foge à luz.

Feito rápido bosquejo
em que ‘inda tudo não digo,
há-de ser o meu amigo
não só patrono, juiz:
ajuíze, que isto é claro,
se acaso há mor embaraço
que um homem, sem ser ricaço,
ver-se pai neste pais!

Lá marcho direito ao ponto.
A gente às vezes acerta;
eu fiz uma descoberta,
que me não parece ma:
para um moço delicado,
que põe mira no orçamento,
uma cadeira em S. Bento –
arranjo melhor... não há.

Levanta-se ao meio-dia;
vai almoçar ao Chiado;
vem às Cortes repimpado
em traquitana veloz:
chega à sala – traça a perna,
endireita o colarinho,
e escreve o seu bilhetinho
à menina dos bandós.

Nos interesses da Pátria,
sua filha em bom direito,
quando vota, diz: «Rejeito»,
ou diz: «Aprovo» também.
Não entrega o voto à sorte,
vai alternando as respostas;
e se acaso volta as costas,
é que não entendeu bem.

Tem sarau em certas noites
nas altas secretarias,
onde há chá, doces, fatias,
e até neve, de Verão.
Faz quase um conto por ano;
emprega quatro parentes;
e as damas, por entre dentes,
perguntam: «Já é barão?»

Eis aqui para meu filho
brilhantíssimo futuro;
e o negócio está seguro,
se aprouver ao regedor:
um gesto de tal potência
torna maus fados propícios,
pode mais que dez comícios
a trabalhar por vapor.

Ponho em vós minha esperança,
ponde em mim vosso cuidado;
criai-me este deputado,
e então mostrarei quem sou.
Esta empresa, em que martelo,
deixa-me a cabeça calva,
se a Pátria não fica salva,
fica salvo... um seu avô.

Acedereis, como espero,
ao meu instante pedido;
e por mim ficareis tido
grande herói entre os heróis.
Basta já d’impertinência;
não pouco tenho abusado.
Sou – vosso amigo e criado –
João Fernandes d’Anzóis.


RESPOSTA DO REGEDOR

Ilustríssimo senhor
João Fernandes d’Anzóis: –
Recebi o seu favor,
estando a fazer uns róis
mau a minha Leanor.

Ela é quem m‘escreve e lê
toda a minha papelada;
eu nunca; e não sei porquê,
que eu dei de cor e salteada
a carreira do á-bê-cê.

Mas letra por minha mão
dá lugar a que alguém pense
ser eu materialão,
como um pobre amanuense
de qualquer repartição.

Isso nunca! Assento a giz
certas coisas cá da tenda,
os queijos, paios, pernis;
ou marco alguma encomenda,
que às vezes chega em barris.

Enquanto à regedoria
é tudo lá da patroa –
trabalha de noite e dia;
e que letrinha tão boa!
parece fitografia.

Mas onde vou eu parar
coas prendas da minha aquela,
sem do negócio tratar?!
É sempre: em falando nela,
sou pior que ela a falar!

Vamos lá ao seu rapaz.
Não é de João Fernandes
a proposta que me faz:
você tem ideias grandes,
e eu cá não lhe fico atrás.

Quer seu filho deputado;
e quem é que não quer disso?...
tão amargo é o bocado!
fazer à Pátria serviço
na poltrona recostado!

Tem razão, meu caro amigo;
Eu também quisera ter...
armazéns cheios de trigo;
fora melhor que viver
cá dentro do meu postigo.

O negócio tem seu osso;
a coisa não vai assim:
anda por’i muito moço,
há tempos, atrás de mim,
e gente que tem caroço!

Olhe que numa eleição
entendo bem da manobra;
vejo muito medalhão
que, suplicante, se dobra
diante do meu balcão.

Porém, apesar do jeito
com que levo a tal campanha,
às vezes um lugar feito
passa a outro que o apanha,
e bumba! lá fica eleito.

São pedidos a não mais!
pedidos da minha classe,
e doutras classes que tais;
e, perto do desenlace,
as cartas ministeriais.

Se o senhor lesse uma lista
que recebi noutro dia
dum machucho meu bairrista,
decerto que se benzia;
era coisa nunca vista!

Ainda no mês passado
arranjava-lhe o rapaz;
tinha um lugar despejado,
e vai de repente: zás!
aparece outro afilhado.

É um doutor franganote,
que perdeu o casamento
com menina de bom dote,
e quer ir ao Parlamento
desforrar-se do calote.

Em vagando este lugar,
é despacho imediato:
tenho por força de o dar
a um capitão mulato,
que chegou do ultramar.

Assim que vagar segundo,
há-de ir um periodiqueiro
em solecismos fecundo,
por quem pede... o mundo inteiro,
não digo, mas meio mundo.

Irá depois um janota
que teve muito de seu.
Nesse toda a gente vota,
que ele enfim ensandeceu,
e alegre o ser idiota.

Estes candidatos são
para a próxima fornada.
Eu, por temer confusão,
tenho a gente separada
em secções de batalhão.

E além de tais pretendentes
à nobre candidatura,
andam cá os meus. parentes
em contínua secatura,
porque têm as costas quentes.

Não tem fim esta encomenda
de cadeiras em S. Bento!
Tomara na minha tenda
um freguês por cada cento;
fazia um milhão de renda.

Eu qualquer dia desisto
de tão tremenda maçada!
Deram-me o hábito de Cristo;
mas pela fita encarnada
hei-de eu sofrer tudo isto?!

Em resumo: o seu intento
não pode cumprir-se já.
Perdoe se o não contento;
porém que remédio há?
deixe vir maré e vento.

Nunca se perde a esperança,
meu caro senhor Anzóis:
está sempre a haver mudança;
vêm à cena outros heróis,
porque a mesma gente cansa.

Neste lindo Portugal
há milagres com frequência:
qualquer ente irracional
saboreia uma excelência,
amarrado ao tribunal.

Meu pai, pobre surrador,
pôde sonhar porventura
que um dia haviam de pôr
esta humilde criatura
no cargo de regedor?!

Agora tudo se faz;
que importa saber de castas?
Há-de ver o seu rapaz
ministro com duas patas,
e dois correios atrás!

Aposto, e verá que acerto.
E adeus; fico ao seu dispor.
Já enfastio, decerto!
Cá me grita a Leanor
que já tem o pulso aberto.

Peço-lhe o maior segredo
dessas coisas que aí vão.
Até um dia bem cedo.
Sou de iodo o coração,
– seu amigo – Zé Penedo.


- António de Cabedo