Olha que 'Menino'...
«Comissões? Ponho as mãos e os pés no fogo»
(Quem muito porfía..)
Personagem central dos escândalos angolanos dos últimos anos, Pierre Falcone, empresário franco-brasileiro-angolano, acusado em França de tráfico de armas, passa ao ataque na primeira entrevista de fundo a um jornal europeu depois de ter escapado à Justiça francesa, graças à sua oportuna nomeação como diplomata angolano, quando estava sob regime de residência fixa.
Alvo de um mandado de captura internacional emitido por um juiz francês, Falcone falou durante quatro horas ao Expresso, no passado fim de semana, num grande hotel de Madrid. Na entrevista, contesta as acusações sobre o tráfico de armamento para Angola e diz que o chamado «Angolagate» é uma manipulação de grupos estrangeiros interessados em desestabilizar o poder angolano.
Sobre as dezenas de milhões de dólares que distribuiu ao longo dos anos por personalidades angolanas, francesas ou russas, afirma que foram pagamentos por serviços e conselhos ou que serviram para alimentar contas secretas «de sobrevivência».//Pierre Falcone desmente que o Presidente Eduardo dos Santos tenha contas suspeitas no estrangeiro em seu nome e chega a garantir - sem qualquer espanto - que colocou 50 milhões de dólares do seu bolso à disposição do Governo angolano, para serem utilizados em «caso de urgência». Durante a entrevista, faz também algumas revelações sobre, por exemplo, a sua intervenção na guerra dos serviços secretos franceses em Angola.
Com 50 anos de idade, Pierre Falcone nasceu na Argélia, filho de um italiano, e tem hoje as nacionalidades brasileira, francesa e angolana. Sobre o processo judicial em França, onde esteve preso durante pouco mais de um ano, diz que ainda não chegou o momento para responder às convocatórias do juiz.
A Justiça francesa lançou contra si um mandado de captura internacional e o senhor está em Madrid a dar esta entrevista. Não tem medo de ser preso?
Não foi a Justiça francesa, foi um juiz de instrução - e a distinção é importante. O mandado é ilegal e inconstitucional e viajo para onde quero, trabalhando como diplomata angolano.
Foi nomeado diplomata na UNESCO para ter imunidade e fugir à Justiça francesa... e não tem aparecido na sede da UNESCO em Paris.
Nunca fugi. Estive preso durante um ano sem direito a visitas e nem me deixaram ir ver o meu pai antes de ele morrer. Evidentemente, a minha nomeação foi eminentemente política, porque o Governo angolano é responsável e sabe distinguir os factos dos rumores. Não houve tráfico ilegal de armas para Angola e o Governo francês também o sabe, porque o disse por escrito ao juiz. Quanto ao trabalho como diplomata, pode-se trabalhar sem ir ao local do serviço.
Foi uma nomeação política que lhe permitiu escapar à Justiça francesa...
Claro, permitiu-me viajar e trabalhar, mas não fugi e eu quero que este processo vá até ao fim. A nomeação foi uma honra para mim. Foi o reconhecimento do resultado do meu trabalho e dos riscos que corri. Na altura do alegado tráfico, o Governo angolano aplicava as resoluções da ONU e era a UNITA que as violava, era a UNITA que fazia tráfico de armas. Eu estava há dois anos e meio a ser perseguido em França, não me podia defender das acusações contra mim e contra Angola, porque através de mim visava-se atingir um governo legítimo, reconhecido internacionalmente. Acho que o juiz deste caso tem estado a ser manipulado, porque nós e ele próprio temos uma carta datada de 15/11/2000, assinada pelo secretário-geral da Defesa Nacional francesa (que depende do gabinete do primeiro-ministro), dizendo claramente que não tinha havido comércio ilícito de armas.
Se não está a fugir, por que razão não vai falar com o juiz de instrução? Desconfia dele? A França é um Estado de Direito.
Neste caso as regras não têm sido as de um Estado de Direito. E vou ver o juiz para falar de quê? O juiz só me interrogou uma vez desde que eu saí da prisão! Ele não está de boa fé, porque tem as provas de que não houve tráfico de armas! Se eu quisesse fugir e tivesse algo a esconder não tinha ido ao primeiro encontro com ele! Fui ingénuo, nessa altura.
O juiz acusa-o de tráfico ilegal de armas, de venda de armas sem autorização, de tráfico de influências, etc. Continua a contestar tudo em bloco?
Afirmo que não ajudámos o Governo angolano a fazer qualquer coisa fora da lei! A compra das armas à Rússia foi feita entre dois países soberanos, respeitando escrupulosamente as leis que regem este tipo de negócio! Eu sou um empresário, não vendo armas, nunca vendi nem um cartucho na minha vida!
Para Angola vendeu.
Não é verdade! Verificou-se um contrato entre o fornecedor e o comprador, e não houve comissões nem retro-comissões!
Houve uma compra de armamento russo por Angola no montante de 600 milhões de dólares, em 1993, e o senhor esteve envolvido no negócio.
As armas foram compradas e a empresa do país que vendeu foi oficialmente autorizada a vendê-las; o país que comprou também teve que apresentar certificados de não-reexportação, etc. Neste contexto, vocês, jornalistas, têm é de perguntar como se inventou um tráfico de armas que nunca existiu! Eu tenho as minhas ideias, há grupos que manipulam as coisas. Ainda é cedo para dizer os nomes, mas tudo vai ficar esclarecido no fim do processo, no qual todos os acusados serão ilibados.
Nessa altura não havia um embargo à venda de armas a Angola?
Não! Não havia embargo contra o Governo e a compra respeitou as leis internacionais. Dois dias depois de ter eclodido o «Angolagate», o mesmo secretário-geral da Defesa Nacional francesa escreveu outra carta ao juiz, em 4/12/2000, a dizer que não tinha havido tráfico de armas. Mas eu continuei preso.
Nesse contrato de venda de armas qual foi o seu papel e do seu sócio na empresa Brenco, Arcadi Gaydamak?
Aproximámos as partes, fomos intermediários, ajudámos Angola a enfrentar uma guerrilha que estava a ganhar terreno depois de ter recomeçado a guerra, a seguir à contestação dos resultados das eleições que o mundo aprovou.
Em termos financeiros, o que fizeram?
Montámos o processamento com bancos europeus, incluindo franceses. E o dinheiro era para tudo: camiões, comida, logística, rádios, medicamentos, barcos... Como tínhamos um escritório em França, tratávamos a parte francesa em França, a russa na Rússia, a parte suiça na Suiça.
E não receberam comissões?
Devido à confusão sobre a palavra «comissões» prefiro empregar o termo «honorários». Recebemos honorários pelo nosso trabalho, como toda a gente que trabalha deve receber.
Fala-se também em comissões de dezenas de milhões para o embaixador angolano Elísio de Figueiredo, que na altura vivia em Paris, para o ex-chefe da Casa Civil do Presidente, José Leitão, para generais, para outras personalidades do círculo do Presidente angolano. Imagino que também contesta tudo isso.
Jamais houve comissões para angolanos, nem as houve para ninguém! O que a «Visão» escreveu recentemente sobre isso em Portugal, citando-me, é falso, e por isso vou accionar um processo em tribunal contra essa revista. O que se verificou, por exemplo, com as contas geridas por Elísio de Figueiredo e José Leitão é que foram postos à disposição do Governo fundos para a logística de sobrevivência. Era tudo oficial e os outros ministros sabiam disso!
Era a sua empresa que desbloqueava esses fundos?
Não. Era o Governo angolano que mandava fazer isso - e todo o Executivo tinha conhecimento dessas contas! Esse dinheiro servia para compras de urgência, como medicamentos, alimentos, aluguer de barcos para transporte de alimentação, etc.
Mas põe as mãos no fogo pela honra dos titulares das contas, acredita que ninguém se aproveitou desse dinheiro?
Ponho as mãos e os pés no fogo!
Mas já foram publicados tantos relatórios, alguns de instâncias internacionais muito credíveis, a denunciar uma corrupção monstruosa em Angola!
Se quiser, falamos disso! Quem é que financia e trabalha na Global Witness, que publicou o último? Por que é que saem esses relatórios?
Quem financia a Global Witness?
Isso são vocês, jornalistas, que devem descobrir. Nós fizemos sempre tudo legalmente e ajudámos a levar a paz a Angola.
Para si não há corrupção alguma em Angola?
A mim, em Angola, em onze anos ninguém me pediu alguma vez um centavo! É verdade que algumas pessoas me pediram ajudas - por exemplo para operar o filho em Londres - e eu ajudei. A Global Witness não diz a verdade. Contesto tudo em bloco. Já recebi muitas ameaças de morte, mas não tenho medo.
Também é acusado de ter sido intermediário e de ter recebido comissões na negociação de empréstimos garantidos com petróleo, empréstimos que o FMI, aliás, não recomenda.
Nunca recebemos comissões algumas, nem de bancos nem de petrolíferas!
Também desmente ter sido intermediário na negociação desses empréstimos?
Não! Encontrei os bancos, claro, mas era preciso, porque ninguém queria emprestar dinheiro a Angola! O Estado angolano estava, nessa época, em sufoco financeiro e as cidades estavam cercadas! Sim, arranjei os empréstimos!
Mas fazia essas negociações gratuitamente?
Claro que não!
Daniel Ribeiro, enviado a Madrid
Versão integral na edição nº 1640 ou em www.expresso.pt