sábado, abril 10, 2004

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Letras com Garfos (Letras)

Memórias de adolescente (a todos os marxistas-leninistas)

O guerrilheiro apontou-me a Kalachnikov. "Senta-te! ", berrou. Sentei-me de imediato na areia húmida do cacimbo que impregnava os meus ossos naquela noite de Agosto. Centenas estavam já de cócoras ou sentados da mesma forma, no meio da noite escura que me confinava o espírito numa angústia que debalde tentava racionalizar. Os grupos eram organizados metodicamente. No meu grupo, umas largas dezenas. Outro grupo, mais além. E outro, e outro e mais outro até onde a minha vista podia detectar os vultos e a percepção de sombras em movimento, ou a minha audição de silêncios mitigados poderia alcançar. Não tinha a noção exacta onde estava. Poderia ser uma parada de um quartel qualquer, enorme concerteza, porque não lhe via os limites ou porque a noite cerrada lhe fazia aumentar as fronteiras. Mais ao longe, grita-se: "Diz Viva à Frelimo! "; segue-se um silêncio angustiador. Uma rajada de metralhadora ressoa com estrondo abafando gritos de morte que se prolongam com gemidos moribundos, exânimes. "São Testemunhas de Jeová, os gajos! Só dizem 'Viva a Deus ', a ninguém mais. Foderam-se!", balbuciou-me o acocorado mais próximo. O absurdo tomou conta de mim, inspirei profundamente o ar da noite e deixei de sentir medo.