sexta-feira, maio 27, 2005

Hoje como ... em 1882!!

Passemos á politica.

N'este campo não ha, ideia propriamente nacional,--é evidente.


Perdendo a pouco e pouco a consciencia da sua tradição historica, Portugal, politicamente, não tem hoje papel na civilisação. Está desempregado. Figura no congresso das nações europeias como um paiz sem modo de vida. Perante o progresso não tem profissão. A missão que elle desempenhou na Renascença pela obra magnifica dos seus sabios, dos seus navegadores, dos seus commerciantes e dos seus artistas, as excellenles condições da sua situação geographica e a paz interior de que tem gosado emquanto a Hispanha se dilacera a si mesma nas eternas lutas intermitentes de desaggregação e de unificação das suas provincias, davam a Portugal o direito e o dever de assumir n'este seculo a preponderancia hegemonica dos estados peninsulares, a direcção espiritual da civilisação iberica. Em vez d'isso Portugal descansa desde o seculo XVI sobre os monumentos immortaes da sua passada energia e acha-se no movimento moderno da raça latina como uma nacionalidade com licença illimitada para tomar ares. Os seus filhos mais intelligenles e mais fortes, uns perseguidos, outros despresados, abandonaram-o aos reis, aos estadistas, aos padres, aos persevejos, ás moscas, e foram uns para os Paizes Baixos fundar e enriquecer a Hollanda e botar á luz Spinosa; outros foram para a America Austral fundar, agricultar e enriquecer o Brazil. O resto é o que ahi está ha dusentos annos sentado ao sol n'uma ponta de banco do mappa-mundi, a cabecear, a coçar os joelhos e a ouvir ranger o calabre á nora da coisa publica, puxada pelo governo, velho boi, d'olhos tapados, afeito ao cerco peguinhado do poço sem bica, tornando a deitar para baixo a agua que traz para cima, e não sabendo o proprio governo, nem sabendo ninguem por que ninguem se importa com isso, se é já o pau da nora que empurra de traz o animal ou se é ainda o animal que tira para deante o pau da nora.

Os differentes partidos que ha muitos annos se succedcm no exercicio do poder teem por chefes dois ou tres individuos, cujas personalidades, absolutamente destituidas de ideias correlativas ou concomitantes, representam as duas ou trez phases por que successivamente vae passando e repassando em circulo sobre o mesmo carreiro a rotação governativa.

Os personagens alludidos teem as intenções mais puras e mais honestas d'este mundo. Ter outras, deshonestas e impuras, dar-lhes-hia massada, e para ahi é que elles não vão.

Diz-se tambem que são todos mais ou menos fortes n'essa arte, velha e atrasada, que se chama a eloquencia e que tem por objecto desfaser pela exageração artificial das palavras a justa proporção das coisas.

São ainda--affirma-se geralmente--habeis parlamentares, o que quer dizer que possuem o talento de dominar as assembleias por meio de transigencias reciprocas e de concessões mutuas, rasoirando os parlamentos pelo nivel de uma mediocridade discreta, tão ôcca como estéril.

Por baixo d'essas virtudes, que reconhecemos e veneramos, os homens que ha vinte annos se revezam no governo carecem das ideias geraes de que procede na sciencia o ponto de vista governativo. As assembleias das duas camaras, revezando-se ora para a direita ora para a esquerda, dão ou retiram a maioria dos votos a cada um d'aquelles senhores, consagrando-se exclusivamente a defendel-os ou a impugnal-os, sem portanto sahirem nunca da orbita dos principios que elles representam, principios a que não correspondem systemas diversos c que se distinguem apenas uns dos outros pelos signaes physionomicos dos estadistas que os teem no ventre, podendo-se dividir assim: principios governativos calvos, principios governativos d'olhos tortos e principios governativos de cabellos tingidos.

Nestes esforços successivos das grandes massas intelligentes da nação vemos dessorarem-se gerações e gerações consecutivas de deputados, fortes temperamentos alguns, solidos provincianos de boa fé, que de trez em trez annos o parlamento recebe vivos e honrados do interior das provincias para trez annos depois lh'os devolver aniquilados para toda a especie d'iniciativa, corrompidos pelo habito de serem mandados, castrados na dignidade pela disciplina imposta pelos seus chefes, podres no caracter pela fermentação da intriga, indelevelmente marcados para toda a vida, pelo ferrete official, com uma pelintrice austera e miseravel, na figura, com uma côdea veneranda de solemnidade prudhommesca, estupida e impenetravel, no cerebro.

É pela mais justa e pela mais completa comprehensão do seu destino social que tanto os individuos como os povos se disciplinam, se fortalecem e se aperfeiçoam. Em Portugal a incapacidade governativa produsiu, primeiro que tudo, este resultado funesto: fez perder ao paiz a noção historica do seu destino, cortou o fio da tradição nacional, lançando o espirito publico n'uma existencia d'accaso como a das tribus bohemias. Depois o predominio da incompetencia scientifica na direcção dos negocios dissolveu a pouco e pouco a liga que deveria estreitar a convergencia de todas as actividades para um fim commum, e pela separação dos interesses operou a separação das energias.

É assim que em pleno seculo XIX, quando está exhuberantemente demonstrado que todos os factos do universo, assim na ordem physica como na ordem social, se encadeiam uns nos outros por leis imprescriptiveis de contiguidade e de correlação, nós vemos em Portugal exercer-se a acção do poder no estudo dos phenomenos tratando-os isoladamente, n'um ponto de vista fetichista, de preto botocudo, como se cada um d'esses phenomenos, regido por uma lei especial e divina, fosse a causa e o effeito de si proprio.

Com mil exemplos se podia comprovar a affirmação que fazemos. Mas basta-nos um qualquer, tirado ao accaso do monte, para pôr essa affirmação em evidencia de facto.

Veja-se como em cada legislatura se propõe e se discute uma das poucas questões graves de que o parlamento ainda se ocupa. Referimo-nos á coisa a que, no calão official em que tem degenerado a lingua patria, se chama--_a questão da fazenda_.

Reunidas as camaras e aberto perante ellas o orçamento do Estado, começa-se invariavelmente por constatar, n'um tremolo elegiaco de symphonia funebre, que continua a existir o deficit. Cada um dos tres governos a quem a corôa alternadamente adjudica a mamadeira do systema encarrega-se de explicar aos tachigraphos essa occorrencia--aliás desagradavel, cumpre dizel-o--mas de que elle, governo em exercicio, não tem a culpa. A responsabilidade cabe ao governo transacto, bem conhecido pelos seus esbanjamentos e pela sua incuria.

Para cada um d'esses tres governos sucessivamente encarregados de trazerem o deficit ao regaço da representação nacional, o governo que immediatamente o precedeu n'esse mesmo encargo é o ultimo dos imbecis.

Tal é o conceito formidavel em que cada um dos referidos tres governos tem os outros dois!

A corôa pela sua parte--e é este o mais augusto do todos os seus privilegios--é successivamente da opinião de todos os tres ministerios; e depois de haver retirado, com sincero nojo, a sua confiança aos imbecis do grupo n.º 1, n.º 2 e n.º 3, a corôa torna a restituir a citada confiança, com uma effusão de jubilo tão sincero como o nojo anterior, a cada um dos grupos de imbecis já referidos mas collocados chronologicamente em sentido inverso d'aquelle em que estavam, ou sejam, por sua ordem, os imbecis n.º 3, n.º 2 e n.º 1.

Trocadas as descomposturas preliminares sobre a questão da fazenda, decide-se que é indispensavel, _ainda mais uma vez_, recorrer ao credito, e faz-se um novo emprestimo. No anno seguinte averigua-se por calculos cheios de engenho arithmetico que para pagar os encargos do emprestimo do anno anterior não ha outro remedio senão recorrer _ainda mais uma vez_ ao paiz, e cria-se um novo imposto.

Fazem-se emprestimos para supprir o imposto, criam-se impostos para pagar os juros dos emprestimos, tornam-se a fazer emprestimos para atalhar os desvios do imposto para o pagamento dos juros, e n'este interessante circulo vicioso, mas ingenuo, o deficit--por uma extranha birra, admissivel n'um ser teimoso, mas inexplicavel n'um mero saldo negativo, em uma não existencia,--augmenta sempre atravez das contribuições intermittentes com que se destinam a extinguil-o já o emprestimo contrahido, já o imposto cobrado.

Assim como os alforges dos antigos pobres das feiras e das extinctas ordens mendicantes, o deficit tem dois sacos, um para deante outro para traz, ambos destinados a receber o vacuo. N'um dos sacos mette-se a divida fluctuante, no outro mette-se a divida consolidada. De quando em quando ha um relampago de jubilo, porque parece por um momento que o alforge do deficit está vasio, isto é, que está sem vacuo dentro: é a divida, que se achava em estado de fluctuação no saco da frente, que passou no estado de consolidação para o saco de traz.

A alegria fugaz mas intensa que provem da illusão d'esta gigajoga vale o dinheiro que custa, mas custa sempre alguma coisa, porque de todas as vezes que elles mexem na divida, seja para o que fôr, mesmo para a mudar de saco, ella cresce.

Pela parte que lhe respeita o paiz espera. O quê? O momento em que pela boa razão de não haver mais coisa que se collecte, porque estará, collectado tudo, deixe de haver quem empreste por não haver mais quem pague.

No emtanto o problema de augmentar a riqueza--unico meio de prover aos encargos--é considerado como absolutamente extranho á _questão da fazenda_. E todavia nem toda a gente ignora que a riqueza não augmenta senão pelo desenvolvimento progressivo do trabalho e que este se acha ligado aos progressos da industria.

Ora emquanto á industria ... Mas este novo ponto pode ficar para outra vez. O feliz encyclopedismo das inaptidões do estado proporciona-nos a facilidade de poder comprovar a sua incapacidade com um só facto qualquer, demonstrando que no paiz coliocado sob o patrocinio de um tal governo, não pode dar-se senão uma especie de cohesão politica:--a liga dos governados para o despreso convicto dos que governam.


Assim escrevia Ramalho Ortigão em, As Farpas - Junho/Julho de 1882.