sábado, março 06, 2004

Musas

Do Lado de Cá

Luís Fernando Veríssimo

(Revista Actual - Expresso)

«Ao criar a arte o homem está imitando a mulher que cria a vida. Aí está a lógica dos deuses ao criarem as Musas. É a inveja do útero!»

Do baú. Desde que Homero pediu à Musa que iniciasse a Odisseia por onde ela quisesse, os escritores esperam das deusas da arte não só inspiração como instruções específicas. Como e por onde iniciar, que estilo usar, que tom, que tamanho, tudo. Queremos não uma musa metafórica, apenas outro nome para o mistério da criação, mas uma musa mesmo, uma musa musa. Uma mulher, com ou sem toga, que sente ao nosso lado e dite, e depois edite, o que escrevemos. Começando pela primeira frase.

- Escreva aí: «Desde que Homero pediu à Musa que iniciasse a Odisseia por onde ela quisesse...»

- Espere. Quem é você?

- Sua Musa.

- Finalmente!

- Não se entusiasme de mais. Eu só dou as ideias. Você terá de fazer o trabalho pesado. Nós nunca escrevemos nada. Ainda mais em computador.

- Mas você é tudo que eu queria. Alguém que me dê ideias. Que decida por mim o assunto e a maneira de tratá-lo. Em bom português, o «approach». Sem precisar ficar esperando que venha a inspiração, jogando paciência. E você está aqui, finalmente. Ao meu lado. A inspiração em carne e osso! Vem cá!

- Epa! Olha o assédio sexual no local de trabalho. Musa não é secretária.

- Desculpe. Eu só queria abraçá-la. Estou emocionado. Que musa é você? Calíope? Clio? Thalia? Erato?

- Tá brincando? Quem você pensa que é, Homero? Essas são do primeiro time. Eu sou a musa da redacção escolar e da crónica.

- Como é o seu nome?

- Ritinha.

- Por que será que as musas são mulheres, Ritinha? Será porque no fundo a arte, para os gregos, era coisa de mulher?

- E eu sei?

- Ou vocês são, na verdade, uma projecção das nossas mães? Como nossas mães alimentavam nossos corpos com leite e papinha, vocês alimentam as nossas mentes com ideias. Como nossas mães guiavam os nossos primeiros passos, vocês guiam a nossa mão no papel, ou nossos dedos no computador. Todo artista é, no fundo, um desmamado querendo voltar para o domínio da mãe. Será isso?

- Nós estamos aqui para trabalhar ou para...

- As escritoras mulheres têm musos?

- Escuta. Me mandaram para ajudar você. Eu já dei a ideia que você queria. Escrever sobre as Musas. Sua importância na Antiguidade. Sua história no Olimpo, onde cantavam acompanhadas pela lira de Apolo. Sua rivalidade com as Sereias, etc. Só aí tem assunto para vários sábados. Mas estas especulações pseudopsicológicas sobre o significado oculto das Musas, em formas de diálogo, não foi ideia minha. Ou você pára ou...

- Talvez os gregos apenas representassem, nas Musas, o fascínio que as mulheres exercem sobre os homens. É para impressionar ou para escapar da mulher que o homem faz tudo o que faz. Tudo. Guerras, cidades, máquinas, civilizações inteiras. E, claro, arte. Tudo ou é paquera ou é terror. Conquista ou fuga. A mente do homem é um templo em que a mulher é estátua e sombra, mãe e prostituta, serva e ameaça. As Musas são as sacerdotisas desse templo, mandadas pelos deuses para pôr ordem no caos, ou transformar caos em arte.

- Eu vou embora.

- Espere! Por que as Musas são mulheres, se há mais artistas homens do que mulheres? Se homens fazem arte, seria natural que homens inspirassem a arte. Mas ao criar a arte o homem está imitando a mulher que cria a vida. Aí está a lógica dos deuses ao criarem as Musas. É a inveja do útero! Se as mulheres criam a vida impregnadas pelos homens, os homens criam a arte impregnados pelas mulheres. As Musas não são inspiradoras, são reprodutoras. Inseminam os nossos cérebros, para nos igualarem a elas como criadoras.

- Quer saber de uma coisa? Tchau.

- Não vá! Eu preciso de um final. Talvez as Musas zombem de nós. Pois, por mais que nos semeiem com ideias e nos fertilizem com frases, jamais daremos à luz vidas de verdade, como as mulheres. Serão sempre ficções. Vidas falsas. Mundos postiços. Épicos hipotéticos. Heróis de mentira. Crónicas sem sentido com musas inventadas. O que você acha? Eu preciso de uma conclusão. Você me deu o começo, musa, agora me dê o fim. Um final, eu preciso de um final! Volta! Ritinha!