ESPOLIADO E ESQUECIDO
O DIABO retoma a causa dos espoliados das ex-colónias e aborda mais um caso humano.
Dramático.
José Alves, de 88 anos; vive agora os últimos dias da sua vida em condições difíceis.
Para trás fica uma história cor-de-rosa de um licenciado em Farmácia por terras de Moçambique
Nuno Dias da Silva
Da Polícia para a universidade
Ex-farmacêutico, ex-polícia, José Alves vive em condições desumanas
Na recôndita aldeia de Gondelim, concelho de Penacova, todos o
identificam como o «doutor José Alves», devido ao seu passado como
farmacêutico. Este idoso, de barba e cabelos brancos em desalinho e unhas enegrecidas, move-se com muita dificuldade, apoiando-se num providencial cajado.
A idade não perdoa. Para ele o tempo passa devagar. Muito devagar.
Revela uma lucidez e uma preparação intelectual invulgar para um homem de tão provecta idade. Vive ao abandono e somente a generosidade dos sobrinhos lhe disfarça a fome. Sobrevive com uma parca pensão de 30 contos.
Ele é um dos muitos espoliados das ex-colónias, que, da noite para o dia, ficou com uma mão-cheia de nada. Dir-se-ia que como o deste homem - nascido no período em que a I República dava os primeiros passos - há centenas de casos em Portugal. É possível. Mas cada história é urna história, e a de José Alves
reveste-se de peculiaridades.
A pacata Gondelim, nas imediações da Barragem da Raiva, foi a terra que o viu nascer. Afecto à classe dos "pés-descalços" como faz questão de realçar, começou logo aos 5 anos a trabalhar no campo. «Não de sol a sol, mas de estrela a estrela», apressa-se a corrigir. O serviço militar foi cumprido em Vendas Novas. Os estudos ficam para trás sem grande êxito, apesar das potencialidades que todos lhes reconhecem. Concluiu o 2º ano do liceu apenas com a instrução primária cumprida. Entretanto, aceita o desafio de dois colegas e concorre à polícia.
Entusiasmou-se, e mais tarde retomou os estudos. A experiência obtida numa farmácia da terra fá-lo ganhar o gosto por estas matérias. Demanda a «cidade dos estudantes», onde tira o Bacharelato em Farmácia, para espanto de muitos que indagavam o que fazia um polícia na universidade. Só posteriormente, com 35 anos e uma distinta média de 15 valores, logra a licenciatura na Universidade do Porto. Inicia o périplo por algumas farmácias
do País, primeiramente no Padrão, no centro da cidade do Porto.
Mas o apelo das províncias ultramarinas revelar-se-ia mais forte. Em 1948 instala-se em Moçambique, na cidade de Lourenço Marques, na Farmácia Augusto Nazaré, onde era sócio a título simbólico, porque «a lei assim o obrigava». O despedimento leva-o até ao estabelecimento de João Ferreira dos Santos, na ilha de Moçambique, descoberta por Vasco da Gama em 1498 e onde os portugueses se instalaram em 1506. Reconhece que em três anos de permanência em África arrecadou mais do que nos restantes anos em Portugal. «Só para dar uma ideia, passei de dois para seis contos por mês, o que na altura era significativo.»
Em 1956 atinge a emancipação, quando passa a gerir a única farmácia de Porto Amélia. O facto de ter prescindido de ajudante obrigou-o a uma entrega total ao negócio, trabalhando «24 sobre 24 horas». «Ganhei a independência e deixei-me ficar para ver se ganhava mais algum". Só num mês acumulou 50 contos.
O esboroar do sonho africano
Os dias de tempestade levam-no à cadeia, apesar de ser o primeiro a reconhecer que o «preto moçambicano gostava de ser português». Detido, conviveu com nove pessoas como sardinha em lata, sujeitos a torturas e interrogatórios numa cela à temperatura de 40 graus. As acusações de traidor eram as mais frequentes no tempo de cativeiro, período em que perdeu dez quilos. «Só havia pão e água, e o peixe que serviam era podre e nem os cães o queriam comer", relembra.
Entretanto, dá-se a transferência da prisão provisória de Porto Amélia para o estabelecimento prisional de Machava, em Lourenço Marques. «Não me mataram porque não quiseram», relata, e conta as suas experiências nesta prisão política.
Aos 65 anos regressa a Lisboa, com "alguma roupa e um transístor".
Dinheiro nem vê-lo. Antes de ser detido depositou cinco mil contos no consulado português em Moçambique, quantia que nunca mais reaveu. Fala com especial ternura do "canudo da formatura, escrito em latim", que o precipitar dos acontecimentos fizeram com que ficasse esquecido nas quentes terras de África.
Já em Lisboa seria acolhido pela Santa Casa da Misericórdia, onde, ironicamente, declara «não ter viste mostras de muita santidade».
À reforma social, no valor de cinco mil escudos, juntava-se o mesmo montante para a reforma da polícia, na sequência de um decreto-lei da responsabilidade de Mota Pinto, que privilegiaria «quem tivesse sido funcionário do Estado».
Um dia, na Segurança Social, um zeloso funcionário informou-o de que «não podia ter direito a duas reformas». Resultado: ficou reduzido a uma reforma, do tempo em que foi agente da autoridade. Do período em que foi farmacêutico, só perduram as memórias, porque da compensação social, nem tusto.
Por estes dias dorme num leito tosco e pobre sob quatro paredes sem condições, que, gracejando, denomina como «o palácio do doutor». Confessa que sofre muito com os rigores do Inverno, e o que lhe vale é o ar puro proveniente da imensa mancha de pinhal que o circunda - se calhar o segredo da sua longevidade.
Mais um, dos muitos casos, que continuam a escapar à sensibilidade dos políticos da nossa praça.
O guarda-costas de Salazar
José Alves fala de Salazar com veneração. No seu tempo de polícia calhou-lhe em sorte escoltar durante um mês a residência onde o Presidente do Conselho passava férias, em Santa Comba Dão. Um "momento único", em que teve oportunidade de trocar umas palavras com tão ilustre inquilino. Sabedor do empenho de Salazar pelas vindimas, o agente José Alves disparou: "Vamos ter boas colheitas, senhor doutor?" Ao que Salazar, ao entrar em casa e
sem se deter, ripostou com um lacónico "vamos, vamos". Minutos
depois, alguém vinha trazer um banco ao sentinela José Alves para que este mantivesse a sua guarda, mas desta vez sentado. Ordens expressas de Salazar. Um gesto que ainda hoje perdura no baú de recordações do ancião de Gondelim.
NOTA: Indaguei, por várias vias, se o Dr. José Alves ainda seria vivo e soube que ele teria morrido em finais de 2001."
Acresce que:
Com a Sessão Plenária da Comissão Permanente da AR, que teve lugar dia 14/08/2003, deparei-me com uma insofismável e reticente questão:
Ao solidarizarmo-nos, com profundo sentido de solidariedade, para com os outros seres humanos cujo sofrimento é absoluto (o caso dos recentes fogos em Portugal), ao ponto de não sentirem mais dor; lembro uma "canção" que teima em não desaparecer - o sofrimento dos denominados Retornados, espoliados, o que quer que queiram chamar, pois talvez não sejam dos nomes mais feios a que fomos votados.
Neste momento há pessoas que estão a sofrer "na pele" uma dor tão agonizante que, por ser tão forte, torna-as insensíveis a ela.
Assim foi com aqueles que há 28 anos atrás passaram por um "fogo" de proporções 100 vezes superiores!!
Sem nada - o resultado da luta de uma vida (ou mais!) perdidos para sempre; um Estado que já não o era!; o ABANDONO TOTAL E COMPLETO (e não me venham com essa farsa do IARN - qual "Auschwitz", apenas sem a tatuagem (perdoem-me os Judeus); o desprezo à chegada; etc, etc, etc.
A DOR era tão grande - imensa, paralizante, anestésica!!
Neste momento de dor, talvez, talvez.. aqueles que sofrem possam vislumbrar o sentido e sentimento que refiro.
28 anos depois, ao ouvir a deputada dos Verdes a requerer que seja prestada ajuda psicológica às pessoas, e em especial às crianças, não pude deixar de chorar, de lembrar - de voltar, uma e outra vez àquela canção distante, de desespero, de uma dor tão imensa, que deixa de ser dor.
E, questionei: já vai sendo tempo de se discutir O FOGO DO PASSADO, O FOGO DA GUERRA da DESTRUIÇÃO.
É tempo de haver vontade social e política para terminar com os FANTASMAS, para "arrejar" os esqueletos.
Que se encare o problema da pseudo-descolonização com seriedade, sem demagogia, sem tentativas de encobrimento e branqueamento.
Que, TODA a classe política portuguesa peça DESCULPAS com ABSOLUTA SINCERIDADE e SERIEDADE, a todos aqueles que passaram por um FOGO 100 superior (não desmerecendo o sofrimento daqueles que o sentem neste momento).
FAÇA-SE JUSTIÇA.
Dramático.
José Alves, de 88 anos; vive agora os últimos dias da sua vida em condições difíceis.
Para trás fica uma história cor-de-rosa de um licenciado em Farmácia por terras de Moçambique
Nuno Dias da Silva
Da Polícia para a universidade
Ex-farmacêutico, ex-polícia, José Alves vive em condições desumanas
Na recôndita aldeia de Gondelim, concelho de Penacova, todos o
identificam como o «doutor José Alves», devido ao seu passado como
farmacêutico. Este idoso, de barba e cabelos brancos em desalinho e unhas enegrecidas, move-se com muita dificuldade, apoiando-se num providencial cajado.
A idade não perdoa. Para ele o tempo passa devagar. Muito devagar.
Revela uma lucidez e uma preparação intelectual invulgar para um homem de tão provecta idade. Vive ao abandono e somente a generosidade dos sobrinhos lhe disfarça a fome. Sobrevive com uma parca pensão de 30 contos.
Ele é um dos muitos espoliados das ex-colónias, que, da noite para o dia, ficou com uma mão-cheia de nada. Dir-se-ia que como o deste homem - nascido no período em que a I República dava os primeiros passos - há centenas de casos em Portugal. É possível. Mas cada história é urna história, e a de José Alves
reveste-se de peculiaridades.
A pacata Gondelim, nas imediações da Barragem da Raiva, foi a terra que o viu nascer. Afecto à classe dos "pés-descalços" como faz questão de realçar, começou logo aos 5 anos a trabalhar no campo. «Não de sol a sol, mas de estrela a estrela», apressa-se a corrigir. O serviço militar foi cumprido em Vendas Novas. Os estudos ficam para trás sem grande êxito, apesar das potencialidades que todos lhes reconhecem. Concluiu o 2º ano do liceu apenas com a instrução primária cumprida. Entretanto, aceita o desafio de dois colegas e concorre à polícia.
Entusiasmou-se, e mais tarde retomou os estudos. A experiência obtida numa farmácia da terra fá-lo ganhar o gosto por estas matérias. Demanda a «cidade dos estudantes», onde tira o Bacharelato em Farmácia, para espanto de muitos que indagavam o que fazia um polícia na universidade. Só posteriormente, com 35 anos e uma distinta média de 15 valores, logra a licenciatura na Universidade do Porto. Inicia o périplo por algumas farmácias
do País, primeiramente no Padrão, no centro da cidade do Porto.
Mas o apelo das províncias ultramarinas revelar-se-ia mais forte. Em 1948 instala-se em Moçambique, na cidade de Lourenço Marques, na Farmácia Augusto Nazaré, onde era sócio a título simbólico, porque «a lei assim o obrigava». O despedimento leva-o até ao estabelecimento de João Ferreira dos Santos, na ilha de Moçambique, descoberta por Vasco da Gama em 1498 e onde os portugueses se instalaram em 1506. Reconhece que em três anos de permanência em África arrecadou mais do que nos restantes anos em Portugal. «Só para dar uma ideia, passei de dois para seis contos por mês, o que na altura era significativo.»
Em 1956 atinge a emancipação, quando passa a gerir a única farmácia de Porto Amélia. O facto de ter prescindido de ajudante obrigou-o a uma entrega total ao negócio, trabalhando «24 sobre 24 horas». «Ganhei a independência e deixei-me ficar para ver se ganhava mais algum". Só num mês acumulou 50 contos.
O esboroar do sonho africano
Os dias de tempestade levam-no à cadeia, apesar de ser o primeiro a reconhecer que o «preto moçambicano gostava de ser português». Detido, conviveu com nove pessoas como sardinha em lata, sujeitos a torturas e interrogatórios numa cela à temperatura de 40 graus. As acusações de traidor eram as mais frequentes no tempo de cativeiro, período em que perdeu dez quilos. «Só havia pão e água, e o peixe que serviam era podre e nem os cães o queriam comer", relembra.
Entretanto, dá-se a transferência da prisão provisória de Porto Amélia para o estabelecimento prisional de Machava, em Lourenço Marques. «Não me mataram porque não quiseram», relata, e conta as suas experiências nesta prisão política.
Aos 65 anos regressa a Lisboa, com "alguma roupa e um transístor".
Dinheiro nem vê-lo. Antes de ser detido depositou cinco mil contos no consulado português em Moçambique, quantia que nunca mais reaveu. Fala com especial ternura do "canudo da formatura, escrito em latim", que o precipitar dos acontecimentos fizeram com que ficasse esquecido nas quentes terras de África.
Já em Lisboa seria acolhido pela Santa Casa da Misericórdia, onde, ironicamente, declara «não ter viste mostras de muita santidade».
À reforma social, no valor de cinco mil escudos, juntava-se o mesmo montante para a reforma da polícia, na sequência de um decreto-lei da responsabilidade de Mota Pinto, que privilegiaria «quem tivesse sido funcionário do Estado».
Um dia, na Segurança Social, um zeloso funcionário informou-o de que «não podia ter direito a duas reformas». Resultado: ficou reduzido a uma reforma, do tempo em que foi agente da autoridade. Do período em que foi farmacêutico, só perduram as memórias, porque da compensação social, nem tusto.
Por estes dias dorme num leito tosco e pobre sob quatro paredes sem condições, que, gracejando, denomina como «o palácio do doutor». Confessa que sofre muito com os rigores do Inverno, e o que lhe vale é o ar puro proveniente da imensa mancha de pinhal que o circunda - se calhar o segredo da sua longevidade.
Mais um, dos muitos casos, que continuam a escapar à sensibilidade dos políticos da nossa praça.
O guarda-costas de Salazar
José Alves fala de Salazar com veneração. No seu tempo de polícia calhou-lhe em sorte escoltar durante um mês a residência onde o Presidente do Conselho passava férias, em Santa Comba Dão. Um "momento único", em que teve oportunidade de trocar umas palavras com tão ilustre inquilino. Sabedor do empenho de Salazar pelas vindimas, o agente José Alves disparou: "Vamos ter boas colheitas, senhor doutor?" Ao que Salazar, ao entrar em casa e
sem se deter, ripostou com um lacónico "vamos, vamos". Minutos
depois, alguém vinha trazer um banco ao sentinela José Alves para que este mantivesse a sua guarda, mas desta vez sentado. Ordens expressas de Salazar. Um gesto que ainda hoje perdura no baú de recordações do ancião de Gondelim.
NOTA: Indaguei, por várias vias, se o Dr. José Alves ainda seria vivo e soube que ele teria morrido em finais de 2001."
Acresce que:
Com a Sessão Plenária da Comissão Permanente da AR, que teve lugar dia 14/08/2003, deparei-me com uma insofismável e reticente questão:
Ao solidarizarmo-nos, com profundo sentido de solidariedade, para com os outros seres humanos cujo sofrimento é absoluto (o caso dos recentes fogos em Portugal), ao ponto de não sentirem mais dor; lembro uma "canção" que teima em não desaparecer - o sofrimento dos denominados Retornados, espoliados, o que quer que queiram chamar, pois talvez não sejam dos nomes mais feios a que fomos votados.
Neste momento há pessoas que estão a sofrer "na pele" uma dor tão agonizante que, por ser tão forte, torna-as insensíveis a ela.
Assim foi com aqueles que há 28 anos atrás passaram por um "fogo" de proporções 100 vezes superiores!!
Sem nada - o resultado da luta de uma vida (ou mais!) perdidos para sempre; um Estado que já não o era!; o ABANDONO TOTAL E COMPLETO (e não me venham com essa farsa do IARN - qual "Auschwitz", apenas sem a tatuagem (perdoem-me os Judeus); o desprezo à chegada; etc, etc, etc.
A DOR era tão grande - imensa, paralizante, anestésica!!
Neste momento de dor, talvez, talvez.. aqueles que sofrem possam vislumbrar o sentido e sentimento que refiro.
28 anos depois, ao ouvir a deputada dos Verdes a requerer que seja prestada ajuda psicológica às pessoas, e em especial às crianças, não pude deixar de chorar, de lembrar - de voltar, uma e outra vez àquela canção distante, de desespero, de uma dor tão imensa, que deixa de ser dor.
E, questionei: já vai sendo tempo de se discutir O FOGO DO PASSADO, O FOGO DA GUERRA da DESTRUIÇÃO.
É tempo de haver vontade social e política para terminar com os FANTASMAS, para "arrejar" os esqueletos.
Que se encare o problema da pseudo-descolonização com seriedade, sem demagogia, sem tentativas de encobrimento e branqueamento.
Que, TODA a classe política portuguesa peça DESCULPAS com ABSOLUTA SINCERIDADE e SERIEDADE, a todos aqueles que passaram por um FOGO 100 superior (não desmerecendo o sofrimento daqueles que o sentem neste momento).
FAÇA-SE JUSTIÇA.