No Dia Internacional da Mulher com Humor!
- As Farpas, Jan. de 1878Ao sr. Ramalho Ortigão que publicou no Diario da Manhã o folhetim seguinte, com o título:
Os exames no Lyceu Nacional—Os fins da educação—Um programma de ensino para o sexo feminino—Como se prepara a emancipação das mulheres—Duas catastrophes: o estado da litteratura feminina, e o estado da cosinha nacional—Grito afflictivo do paiz: menos odes e mais caldo.
Termina assim o summario do ultimo numero das Farpas. Qual de nós deixaria de ler com a maxima attenção um artigo escripto pelo sr. Ramalho, sobre assumptos de tanto interesse para o nosso sexo? nenhuma de certo. E para que se não diga com verdade que o grito afflictivo do paiz, do qual o sr. Ramalho se faz orgão, pedindo-nos caldo, não foi ouvido por uma só mulher portugueza, que, condoida, o soccorresse, venho por mim e em nome das senhoras portuenses, dar-lhe não só caldo, mas tambem luz, que o alumie nas suas investigações ácerca d'um assumpto, que é realmente grave—a dyspepsia nacional, que s. ex.ª attribue á nossa ignorancia culinaria, fazendo assim pesar sobre nós, tão tremenda responsabilidade.
Se o assumpto de que se trata, não fosse realmente grave, contentar-nos-hiamos com o praser que nos dá sempre a leitura dos escriptos do sr. Ramalho, pela elegancia do seu estylo, e finura do seu espirito, e apenas diriamos, na nossa linguagem de cozinheiros: É pena que os escriptos do sr. Ramalho não sejam mais succulentos! são como os caldos feitos pelos cosinheiros francezes, de apparencia magnifica, depurados até á transparencia, muito aromatisados ... mas sem substancia.
Quer-nos porem parecer, apesar da ironia com que o sr. Ramalho falla sempre de nós, que não tem rasão para nos querer mal; e que como filho, esposo e irmão de senhoras portuguezas, e por isso quasi nosso irmão, deseja com certeza a nossa felicidade e se promptificaria da melhor vontade a fazer-nos um favor se lh'o pedissemos. Ouça-me pois.
Não ensine á sr.ª D. Jeronyma, nem a mulher nenhuma portugueza, como se faz esse alambicado caldo francez, tão purificado, que por fim como o proprio sr. Ramalho confessa, deixa de ser um alimento. Se tem amor á sua patria, anime-nos, e aconselhe-nos a que continuemos a fazer os classicos caldos portuguezes, succulentos e compactos como os faziam nossas avós, e como nós todas ainda hoje sabemos fazer. Se o principal agente do temperamento d'um povo, do seu caracter e da formação das suas idéas, é, como s. ex.ª diz a sua alimentação, não esqueçamos que foi comendo esses caldos e quasi só com elles, que os energicos e valentes portuguezes contiveram sempre em respeito o poder de Castella, e que na Africa, e na Asia praticaram acções de tão prodigioso valor. E descendo á historia dos nossos dias, lembre-se que os vultos grandiosos dos lidadores da epopéa da liberdade, apesar de alimentados pelo caldo nacional e então infelizmente bem magro, mostraram em cem combates a sua heroica energia, e sua valorosa audacia, sem que o estomago se incommodasse com a dyspepsia nacional. É só com caldo, e com brôa que todos os dias se alimentam aqui centenares de homens do povo, que supportam, sem cansaço, nem fadiga, durante dez ou doze horas por dia, os mais rudes trabalhos; e comtudo não soffrem de dyspepsia. Será por terem mulheres muito instruidas, ou porque o caldo que comem é preparado por cosinheiros de 5:000 francos? deve ser por uma d'estas rasões, visto que é o sr. Ramalho quem nol-o affirma.
A dyspepsia não é em Portugal uma doença nacional, é quasi privativa dos homens das classes elevadas—e quer que lhe digámos porque? Porque elles teem com raras excepções, uma mocidade dissipada; porque na idade dos quinze aos vinte annos, quando os rapazes inglezes e allemães fazem consistir o seu maior prazer em se exercitarem nos jogos athleticos, e todo o seu orgulho em serem vencedores n'uma corrida ou n'uma regata, os portuguezes vão descançar das lides do estudo nos bancos dos botequins e das tavernas, onde é considerado heroe aquelle que come e bebe mais brutalmente, e como deus o que engole successivamente vinte e um calices de licor ou cognac, o que na pittoresca phraseologia d'esses senhores se chama dar uma salva real! Desculpa-os porém o axioma do nosso codigo de educação: que é preciso dar muita cabeçada para vir a ser homem serio.
Conhece o sr. Ramalho, bem melhor do que nós, todos os perigos porque passam os rapazes desde que se emancipam da tutella materna, até que chegam a ser homens. Estude o meio de os livrar d'esses perigos, e de lhes regenerar os costumes, e verá que, quando chegarem a ser chefes de familia, seu natural destino, não precisarão de encontrar na esposa o braço forte que lhes seja amparo, e terão o estomago são como em crianças, podendo digerir perfeitamente um caldo, mesmo quando elle não seja perfeitamente transparente, e até quando tenha seus vestigios de gordura. Faça isto que lhe pedimos, e todas nós bemdiremos o seu nome, pois d'este modo terá prestado um importantissimo serviço ao seu paiz.
O seu programma para a educação das mulheres parece-nos excellente para a França, Inglaterra e outros paizes onde as meninas são educadas nos collegios, longe da familia; mas aqui onde em geral as creanças que os frequentam comem e dormem em casa, essa educação que nos habilita a ser boas ménagéres, já que o sr. Ramalho gosta de francezismos, recebemol-a nós todas com o exemplo e lição de nossas mães.
Em Portugal onde todo o serviço domestico é geralmente feito em casa, todas nós sabemos como se lava, como se engomma, como se cozinha, como se faz doce, como se talha um vestido, etc. Mesmo as senhoras que não fazem esses serviços sabem como elles são feitos, pois desde crianças os viram fazer. O que não sabemos, lá isso não, é differençar os differentes generos de mobilia e o seu estylo caracteristico nas epocas mais notaveis da arte ornamental, etc. etc.; mas em quanto considerarmos, como até agora, a vontade, e o gosto do dono da casa, a suprema lei que nos rege na escolha de todos esses artigos em que nos falla, deixaremos esses conhecimentos aos cuidados dos nossos maridos.
Em quanto á nossa educação moral, estamos convencidas que em paiz nenhum as mulheres são mais honestas, mais laboriosas, mais dedicadas, mais sobrias e economicas, mais submissas á vontade do marido que nós, e toda a eloquencia do sr. Ramalho não é capaz de abalar sequer a nossa convicção.
Em França e em Inglaterra ha muitas mulheres—por profissão—enfermeiras, aqui não as ha senão nos hospitaes, e nem se lhes sente a falta, porque em toda a casa onde ha uma mulher, quer ella seja mãe, esposa, filha, irmã, ou mesmo criada, ha uma enfermeira sollicita, carinhosa e dedicada, cuja coragem nem sequer vacilla ante os horrores do contagio, que tantas vezes aniquilla o animo de homens energicos e audaciosos.
Para sabermos fazer prodigios de economia não precisamos de nos alistar n'uma escola ingleza, e, se o não soubessemos, a primeira mulher do povo que interrogassemos n'ol-o ensinaria. Tambem em Portugal se póde sustentar uma familia com 18$000 réis por semana, mas n'essa familia—o chefe, que trabalha do nascer ao pôr do sol, sustenta-se comendo tres tigellas de caldo que lhe custam 10 réis cada uma, 20 réis de sardinhas, e 10 réis de brôa por dia: total 90 réis.
Convença os homens, com a sua deslumbrante eloquencia, de que este alimento é muito sufficiente para lhes conservar robustas as forças vitaes, e verá como nós todas fazemos economias prodigiosas, e como uma casa deixará de ser uma lôba para se transformar n'uma burra.
Mas se considera como o ideal da perfeição na mulher, ser ella o braço forte e escudo da familia, tambem lhe podemos aqui apontar numerosos exemplos d'essas. As mulheres de Avintes passam os dias remando e guiando barcos no nosso Douro para ganhar o pão dos filhos, em quanto os maridos ficam em casa cosinhando: já vê que para qualquer de nós realizar o seu ideal basta casar em Avintes.
A educação intellectual das mulheres, quando ellas se não dediquem a ser mestras, póde, e até deve, assim como a moral, receber, como complemento necessario, as liçoes dos homens de quem forem esposas. Assim reconhecendo no marido superioridade em tudo, até mesmo nos conhecimentos litterarios, ser-lhes-ha mais facil ter por ele esse respeito que a religião e a sociedade nos impõem como o primeiro dever da esposa.
Em quanto á emancipação das mulheres, esse sonho dourado das senhoras inglezas—nós, menos profundas pensadoras, não o queremos.
Entendemos que a naturesa, que nos obriga a soffrer cruciantes dores physicas para attingirmos o apogeo da nossa gloria—o ser mãe, nos ensina a todas, que a nossa missão na terra, é saber soffrer e amar, por isso beijamos com os olhos rasos de lagrimas de alegria o filho que acaba de nos fazer soffrer as dôres da maternidade, e abençoamos reconhecidas a mão que prende as nossas algemas de escravas, quando essa mão é a de um homem, em quem passados os enthusiasmos da paixão, encontramos as solidas virtudes que apreciamos e respeitamos.
Regenerados os costumes dos homens, a familia portugueza, constituida como até agora, poderia ser apresentada como modelo ás nações mais civilizadas da Europa.
Filhos ambos da mesma terra, e quasi da mesma idade, considero-me sua irmã e como tal deixe-me dar-lhe um conselho. Se eu tivesse a sua intelligencia, inquestionavelmente uma das mais brilhantes do paiz, essa sua robustez physica, a sua grande cabeça na qual o chapéo de Thiers ou de Bismark assentaria perfeitamente, dedicar-me-hia a escrever livros, que fossem mais uteis do que agradaveis, e deixaria aos palhaços dos circos o trabalho de fazer rir o publico.
Em paga de todos os favores, que lhe peço, prometto fazer-lhe só um, mas esse importantissimo.
Não dizer a nenhuma senhora portugueza com que caldo creseu e medrou o sr. Ramalho, senão julgal-o-hiam tão criminoso como quem maldiz dos seus.Sua
Irmã de Caridade