segunda-feira, março 03, 2008

Pedrada no charco

O MAL NÃO ESTÁ NOS POLÍTICOS. ESTÁ EM NÓS
(Atrevo-me a acrescentar: que placidamente lhes permitimos todas as patranhadas.)



João César das Neves publica um artigo certeiro no DN, profuso em reflexão.

Portugal está desanimado e todos os lamentos indicam a causa: os políticos não prestam. Quase se apalpa a desorientação e falta de liderança. As declarações públicas, muito variadas, partilham um elemento comum: ninguém faz ideia do rumo do País. Fala-se, propõe-se, sobretudo denuncia-se e critica-se, mas não se apresenta um objectivo claro e uma forma realista de lá chegar. No entanto, temos de o dizer, os políticos actuais não são piores que os anteriores. Por que razão estão tão perdidos?

O que mudou foi o País. Aliás, o drama actual é consequência do sucesso dos políticos. Depois dos terríveis choques da revolução de Abril e da adesão à Europa, as instituições portuguesas estabilizaram. Mas a calma fez regressar o pior da cultura lusa. Surgiram as classes instaladas, direitos adquiridos, interesses organizados. Voltámos à esclerose social que destruiu o tempo de D. Fernando, D. João III, D. Carlos e Afonso Costa. Mas a era da informação e globalização não se compadece com corporativismos, privilégios e condicionamentos industriais. Este é o busílis da questão que nenhuma força política se atreve a enfrentar.

O problema mais grave do País está no confronto entre contribuintes e grupos de interesse. Infelizmente essas duas forças diluem-se na sociedade, não são bem definidas e, em certa medida, coincidem. Mas através do Orçamento do Estado metade do produto nacional é retirada a uns para ser dada a outros. Esta redistribuição, em geral saudável e necessária, passou a incluir grandes desvios para actividades fúteis ou até nocivas. Burocracias, subsídios, bloqueios, estudos técnicos, funcionários inúteis, inspectores fanáticos, professores sem aulas, planos tecnológicos.

Como é óbvio, os interesses instalados instalam-se em primeiro lugar nos próprios partidos. No PCP chamam-se "sindicatos", no PP "classe média", no BE "povo", no PS e PSD chamam-se "forças vivas", mas são sempre os mesmos e todos querem a mesma coisa, manter as regalias que o sistema lhes dá.

O Governo e o PS, como antes o PSD, enchem a boca com as reformas, fizeram algumas e criaram conflitos. Mas nunca estiveram realmente convencidos da sua justeza. Após três anos concretizaram muito menos do que disseram. Vivem hoje um misto de embriaguez de poder e de temor da ressaca. Do PSD pode dizer-se o mesmo, hoje com mais ressaca que embriaguez. Ambos sacrificam as ideias aos cargos.

Igual simetria se vê entre o CDS-PP e o BE. Aí as ideias são sacrificadas às próprias ideias. Sempre indefinidos em termos ideológicos, já passaram por várias posições opostas. O PP foi liberal, democrata-cristão e conservador, pró e antieuropeu. O BE assume uma salganhada que vai do ecologismo ao trotskismo e ao maoísmo, sem sequer tentar a síntese. A diferença é que os populares anseiam, enquanto os bloquistas desprezam o poder. Mas o valor de ambos é a denúncia e a crítica, nunca a solução e a construção.

O PCP é um caso à parte, o único partido com ideias claras sobre o futuro. Só que as suas ideias são do passado. Há muito tempo que não as vêem e, pelo cheiro, começam a suspeitar que estejam fora de prazo.

Entretanto o Estado está totalmente absorvido consigo próprio e alheio às questões sociais. A administração passa a vida a olhar para o umbigo. É espantoso como as discussões e debates, reformas, políticas, medidas e discursos quase só têm a ver com funcionários e servidores públicos. Nunca se fala ou se lida com cidadãos ou utentes, a não ser para os acusar de evasão fiscal e violação de regulamentos.

O País, que defronta desemprego e globalização, atrasos na justiça e custos da saúde, confusão na educação e aumento da criminalidade, não vê ninguém que o inspire. Existe uma patente incapacidade das instituições para entenderem, quanto mais lidarem com a situação nacional. A democracia funciona e ainda podemos evitar o pior. Este não é um Estado falhado, como o rotativismo liberal ou a Primeira República. Mas é preciso perceber que o mal não vem dos políticos mas da esclerose.