terça-feira, setembro 12, 2006

Genealogia da Moral

Criar um animal que pode fazer promessas - não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs em relação ao homem?
Não é este o verdadeiro problema do homem?...

O facto de que este problema esteja em grande parte resolvido, deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que actua de modo contrário: a do esquecimento.

Esquecer não é uma simples vis inertiae (força da inércia), como crêem os superficiais, mas uma força inibidora, activa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivido, em nós acolhido, já não penetra na nossa consciência em estado de digestão (ao qual poderíamos chamar "assimilação psíquica"),mas a todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou "assimilação física".

Fechar temporariamente as portas e as janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tábua rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois o nosso organismo é disposto hierarquicamente) - eis a utilidade do esquecimento, activo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta:

com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico - de nada consegue "dar conta"... Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos,­ nos casos em que se deve prometer:

não sendo um simples não-mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida, não a simples indigestão da palavra uma vez empenhada, da qual não conseguimos dar conta, mas sim um activo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade:

de modo que entre o primitivo "quero", "farei", e a verdadeira descarga da vontade, seu acto, todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstâncias, mesmo actos de vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa esta longa cadeia do querer.
Mas quanta coisa isto não pressupõe! Para poder dispor de tal modo do futuro, o quanto não precisou o homem aprender a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar - para isso, quanto não precisou antes tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário, também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como porvir!

- Nietzsche, I