domingo, maio 23, 2004

Sobreviventes e familiares de vítimas apresentam queixa no TPI

Sobreviventes e familiares das vítimas da repressão após o alegado golpe de Estado de 27 de Maio de 1977, em Angola, apresentaram queixa por genocídio no Tribunal Penal Internacional (TPI) contra os Estados angolano e cubano.

A informação foi avançada à Agência Lusa por Silva Mateus, presidente da Fundação 27 de Maio, que representa sobreviventes e familiares dos alegados golpistas.

Em declarações por telefone, a partir de Luanda, Silva Mateus acrescentou que a abertura do processo foi feita em nome da fundação e foram pedidas indemnizações.

Da queixa fazem também parte provas documentais, que incluem depoimentos de sobreviventes, fotografias de pessoas vítimas de tortura, de valas comuns e recortes de jornais da época.

Toda esta documentação, adiantou Silva Mateus, foi também enviada para organizações como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o Comité Internacional da Cruz Vermelha e a Amnistia Internacional.

Na versão oficial, uma declaração do Bureau Político do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), divulgada a 12 de Julho de 1977, o 27 de Maio foi uma "tentativa de golpe de Estado" por parte de "fraccionistas" do movimento, cujos principais "cérebros" eram Nito Alves e José Van-Dunem.

Para alguns sobreviventes, como Jorge Fernandes, José Fuso e José Reis, que vivem em Portugal, tratou-se de "um contra-golpe", uma vez que Nito Alves pretendia apenas "cumprir escrupulosamente os estatutos do movimento" e seguir "a orientação marxista-leninista adoptada".

Golpe ou contra-golpe, a repressão que se seguiu ao 27 de Maio contra os chamados fraccionistas teve graves consequências na sociedade angolana pelo número de mortos e detidos, mas também no seio do próprio MPLA, que perdeu muitos dos seus quadros e jovens militantes.

Ninguém sabe ao certo quantas pessoas morreram. Para Silva Mateus, ele também um sobrevivente e que diz basear-se em levantamentos feitos por organizações não governamentais, foram mais de 82.000 as vítimas, enquanto o Partido Renovador Democrático angolano fala em 30.000 mortos.

Em Abril de 1992, o governo angolano reconhece que foram "julgados, condenados e executados" os principais "mentores e autores da intentona fraccionista", que classificou como "uma acção militar de grande envergadura" que tinha por objectivo "a tomada do poder pela força e a destituição do presidente (Agostinho) Neto".

Entre os 11 nomes divulgados pelo governo estavam Nito Alves, José Van-Dúnem e a sua mulher Sita Valles, militante da União dos Estudantes Comunistas em Portugal e que passou a militar no MPLA em meados de 1975. Os seus corpos, bem como os dos restantes, nunca foram entregues às famílias, nem emitidas certidões de óbito.

Todos concordam que se tratou de divergências ideológicas e de ambos os lados surgem acusações de fraccionismo.

Os sobreviventes com quem a Lusa falou consideram que existia uma ala maoísta, que preconizava uma viragem à direita, liderada pelo secretário administrativo do movimento, Lúcio Lara, e a ala marxista, pró-soviética, defendida por Nito Alves, que reflectiam a realidade mundial em plena Guerra Fria.

Na declaração do Bureau político, um mês e meio após o golpe, afirma-se que Nito Alves e José Van-Dúnem defendiam "teorias racistas inconciliáveis com o programa" do partido, e que, apesar do seu "vocabulário ultramarxista", eram "representantes da pequena burguesia a que diziam votar tanto ódio".

Por outro lado, os que foram acusados de fraccionismo consideram que o golpe já estava a ser feito pelo grupo dos maoístas, que colocaram os seus apoiantes nos principais centros de decisão do partido e "instrumentalizaram alguns media angolanos, em especial o Jornal de Angola", para criar um "clima de terror" contra os que consideravam "fraccionistas".

Como exemplo, citam os editoriais do Jornal de Angola, de autoria do jornalista e escritor Costa Andrade (Ndunduma), que todos os dias apelavam para a luta contra os fraccionistas do "grupo das lagartixas".

Após o 27 de Maio, estes editoriais tinham títulos como "Não pode haver tolerância para os fraccionistas", "Encontrá-los e prendê- los", "Fuzilar os fraccionistas" ou "Vingar os heróis".

Estes heróis eram os seis dirigentes do MPLA mortos na manhã de 27 de Maio e cujos corpos foram encontrados carbonizados numa carrinha. Depois da descoberta dos corpos, começou a repressão e uma verdadeira "caça ao homem".

Os sobreviventes afirmam que já ouviram uma versão de que terá sido a própria polícia da segurança do Estado (DISA) a matar estes dirigentes, incluindo o então ministro das Finanças, Saidy Mingas, para incentivar a "chacina" que se seguiu.

Esta é também a versão do presidente da Fundação 27 de Maio, que afirma ter "provas", que "um dia" apresentará.

Dados factuais foram a tomada a Rádio Nacional e a Cadeia de São Paulo e a organização de uma manifestação popular que se dirigia para o Palácio presidencial.

Os sobreviventes afirmam que se tratou de uma contestação popular e que Nito Alves nunca quis substituir Agostinho Neto.

"Se Nito quisesse realizar um golpe de Estado militar com certeza teria conseguido, porque, desde que os cubanos ou os soviéticos não interviessem, ele tinha o apoio das brigadas mais importantes", salientou Jorge Fernandes.

Os cubanos acabaram por intervir e, ao final da manhã do dia 27 já tinham retomado o controlo da Rádio Nacional e da cadeia de São Paulo.

Nito Alves e José Van-Dúnem tinham sido formalmente acusados de fraccionismo em Outubro de 1976. Os visados propuseram a criação de uma comissão de inquérito, que foi liderada pelo actual presidente angolano, José Eduardo dos Santos, para averiguar se havia ou não fraccionismo no seio do partido.

As conclusões desta comissão nunca foram divulgadas publicamente e Nito Alves nunca terá sido ouvido. Decide então escrever "13 teses em minha defesa", que, segundo os seus apoiantes da altura, não teve oportunidade de apresentar porque foi, juntamente com José Van-Dúnem, expulso do comité central do movimento, a 21 de Maio de 1977.

"Muitas pessoas pediram para intervir após o anúncio da expulsão e não lhes foi permitido. À saída da reunião foram presos", referiu José Fuso. "Muitas pessoas foram presas antes de 27 de Maio e até as cadeias estariam já a ser preparadas para receber os "fraccionistasÈ".

"Depois destas detenções, sabíamos que alguma coisa ia acontecer", acrescentou.

Na altura, dizem os sobreviventes, consideravam o presidente Neto como o seu líder e falam mesmo em "culto da personalidade". Hoje já não pensam assim e atribuem-lhe responsabilidades.

Se o primeiro discurso de Neto após o golpe foi moderado, o segundo foi o mote para "caça ao homem" que se seguiu.

Neto afirmou: "Não haverá contemplações". "Não perderemos muito tempo com julgamentos".

José Reis recorda que após tantas mortes e detenções daqueles que defendiam uma orientação pró-soviética, o MPLA acabaria por adoptar a ideologia marxista-leninista no seu primeiro congresso como partido político, em Dezembro de 1979.

Os apoiantes de Nito dizem que este nunca foi julgado. O governo angolano diz que sim, pelo Tribunal Militar Especial, criado em Julho de 1977.

Em Julho de 1979, Agostinho Neto decide dissolver a DISA pelos "excessos" que havia cometido e, alegadamente, por pressões internacionais, em especial no seio da Organização da Unidade Africana (OUA), agora União Africana (UA) .

A fundação 27 de Maio exige hoje do governo um "pronunciamento público" não só a "reconhecer que houve excessos", mas também "que as mortes aconteceram sem causa justa".

No ano passado, alguns sobreviventes dirigiram uma carta aberta ao presidente angolano para que criasse uma "entidade independente", que se ocupasse da análise dos documentos disponíveis e fizesse um levantamento de todos os que morreram ou foram detidos. Não obtiveram resposta.

Na mais recente declaração do Bureau Político do MPLA sobre o 27 de Maio, deixou-se cair a expressão "golpe de Estado". Passaram a ser "factos" e "acontecimentos" e apela-se à "reconciliação". Silva Mateus diz que é positiva esta nova "abordagem", mas que "não chega".

Passados 27 anos, cada protagonista construiu a sua "estória" e as diferentes versões impedem que se inscreva em definitivo este período numa História maior que é a de Angola.


Por Vera Magarreiro
da Agência Lusa